O dia seguinte ao apagão que tirou do ar os aplicativos do Facebook, incluindo Instagram e WhatsApp, não foi menos tenso para a empresa de Mark Zuckerberg. Nesta terça-feira, 5, Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook, participou de audiência no Senado dos Estados Unidos, em que expôs a lógica da companhia de priorizar o crescimento em detrimento da segurança e jogou luz sobre caminhos de regulação para as redes sociais. O depoimento ocorre após uma série de reportagens revelar negligência da empresa em moderação de conteúdo, o que caminha para ser a maior crise do Facebook desde o escândalo Cambridge Analytica, em 2018.
Frances, que trabalhou como gerente de produto na equipe de integridade cívica do Facebook, foi a responsável por trazer a público pesquisas internas do Facebook que mostram que a empresa negligenciou a moderação de conteúdo de suas plataformas. Os documentos foram revelados nas últimas semanas pelo jornal americano Wall Street Journal e também enviados à Securities and Exchange Commission (SEC, na sigla em inglês), órgão regulador das empresas listadas em bolsa nos Estados Unidos.
Parte das denúncias envolve a relação do Facebook com crianças e adolescentes. Uma das pesquisas vazadas concluiu que 1 em cada 3 meninas que se sentiam mal com o próprio corpo ficavam ainda pior ao acessar o Instagram. A audiência desta terça, chamada "Protegendo Crianças Online", focou justamente nas descobertas da empresa relativas ao efeito do Instagram em usuários jovens.
Na semana passada, o mesmo subcomitê do Senado americano ouviu Antigone Davis, diretora de segurança da rede social, que afirmou que os resultados das pesquisas foram interpretados incorretamente. Marsha Blackburn, senadora republicana, questionou a forma como a executiva do Facebook minimizou a importância das pesquisas em seu depoimento. “Gostaria de lembrar que as pesquisas não eram de terceiros, eram internas. Eles sabiam o que estavam fazendo”, disse na audiência desta terça.
Além de perguntas sobre como o Facebook manuseia dados, gerencia algoritmos e se dedica a problemas de segurança, os senadores fizeram questionamentos práticos sobre a visão de Frances em relação a legislações americanas como a Seção 230, que garante regras sobre liberdade de expressão e moderação de conteúdo na internet, a Lei de Proteção à Privacidade da Criança na Internet e também regulações de proteção de dados. A Seção 230, especificamente, virou alvo dos dois principais partidos políticos dos EUA nos últimos anos: o Republicano acredita que as redes barram conteúdo de forma excessiva, enquanto os Democratas apontam para uma certa negligência das plataformas em relação ao conteúdo que circula por lá.
“Não consertaremos isso sem a ajuda do Congresso”, afirmou Frances na audiência. “Esses problemas podem ser resolvidos. Acredito no potencial do Facebook de conectar sem ferir nossa democracia. Mas o Facebook não fará essa mudança por conta própria. Aceitei o risco pessoal de vir a público porque acredito que ainda temos tempo para agir”.
As sugestões de regulação da ex-funcionária podem virar o primeiro passo para uma regulação mais dura para as empresas de tecnologia– os Estados Unidos ainda não têm regulação de privacidade nos moldes da Lei Geral de Proteção de Dados do Brasil (LGPD) e do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da Europa (GDPR).
Entre as sugestões para regulação, Frances defendeu que o Facebook aumente a idade mínima das plataformas para 16 ou 18 anos. Sobre a Seção 230, a ex-funcionária argumentou que a legislação deve se atentar mais ao funcionamento de algoritmos do que a conteúdos na plataforma, já que as gigantes de tecnologia conseguem ter controle sobre os sistemas. Além disso, uma das propostas foi a criação de uma agência governamental independente com especialistas para estudar ou auditar o impacto de grandes plataformas digitais.
“Ajustes em regulações de privacidade desatualizadas não serão suficientes”, disse Frances. Na opinião dela, um ponto de partida seria o acesso total aos dados da plataforma para pesquisas externas: “Com base nisso, podemos construir regras e padrões sensatos para lidar com os danos ao consumidor, conteúdo ilegal, proteção de dados, práticas anticompetitivas, sistemas algorítmicos e muito mais.”
“Hoje, nenhum regulador tem um menu de soluções para consertar o Facebook porque a empresa não queria que eles soubessem o suficiente sobre o que está causando os problemas”, reforçou Frances. “Caso contrário, não haveria necessidade de um denunciante”.
Questionada sobre a necessidade de desmembrar o Facebook, que englobou na última década empresas como Instagram e WhatsApp, ela disse ser contra medidas do gênero. “Os problemas envolvem desenhos de algoritmos e inteligência artificial”, disse Frances, sinalizando que os executivos poderiam seguir tomando decisões erradas mesmo se o Facebook e o Instagram fossem empresas separadas.
“Se o Facebook for separado do Instagram, é provável que a maior parte do dinheiro investido em publicidade vá para o Instagram, mas o Facebook continuará a ser esse Frankenstein que está colocando vidas em perigo em todo o mundo”, afirmou.
Defesa
No último dia 27, o Facebook anunciou que estava pausando em seu projeto de rede social para crianças, o Instagram Kids, após a repercussão dos documentos vazados pelo Wall Street Journal e a pressão de reguladores federais. O projeto, que visa construir uma plataforma específica para jovens com menos de 13 anos, provavelmente seguirá em andamento, afirma Frances, por ser uma forma de garantir o crescimento de crianças dentro das redes no futuro.
“Eu ficaria surpresa se eles parassem o desenvolvimento do Instagram Kids. Para manter o ‘sucesso’, eles precisam garantir que a nova geração esteja engajada tanto quanto a geração atual está e para isso eles querem fisgar essas crianças desde cedo”, explica.
Durante a sessão, numa tentativa de questionar a autoridade de Frances na discussão, Andy Stone, um dos diretores de política de comunicação do Facebook, postou no Twitter que a ex-funcionária não trabalhava diretamente com a área de segurança infantil, pesquisas ou de Instagram.
Ciente do tuíte, a senadora republicana Marsha Blackburn leu a mensagem na corte e sugeriu que Stone tomasse parte no caso e desse sua versão dos fatos. "Vou simplesmente dizer isso ao Sr. Stone: se o Facebook quiser discutir a segmentação de crianças e violações de privacidade, estou estendendo a você um convite para dar um passo à frente, prestar juramento e testemunhar perante este comitê".
Outra diretora de política de comunicação da empresa, Lena Piesch, também reiterou o trabalho de Frances no Facebook fora das áreas envolvidas no estudo e que a ex-funcionária havia passado menos de dois anos na companhia.
“Não concordamos com a caracterização de Frances em muitas questões sobre as quais elatestemunhou. Apesar de tudo isso, concordamos em uma coisa: é hora de começar a criar regras padrões para a internet. Já se passaram 25 anos desde que as regras para a Internet foram atualizadas e, em vez de esperar que a indústria tome decisões sociais que pertencem aos legisladores, é hora de o Congresso agir”, disse Lena em comunicado.
Em entrevista ao canal americano CNN, Monika Bickert, vice-presidente de políticas de conteúdo da plataforma, afirmou que as alegações feitas por Frances sobre o Facebook inflamar discussões em suas redes sociais não eram verdadeiras.
"Nós fazemos o oposto, na verdade. Se você olhar em nosso centro de transparência, você pode ver que reduzimos a visibilidade de engajamento artificial e click baits. Por que faríamos isso? Um grande motivo é a saúde a longo prazo dos nossos serviços. Queremos que as pessoas tenham uma boa experiência”.
Ao final da audiência, Frances prometeu manter conversas com os legisladores.
Guerra declarada à Zuckerberg
Apesar de Mark Zuckerberg estar fugindo dos holofotes de polêmicas, senadores ressaltaram a participação do fundador do Facebook na conduta da empresa em relação às pesquisas e à negligência com seus usuários. O senador Blumenthal afirmou que a política de não se responsabilizar, não pedir desculpas e não dar explicações é prejudicial aos usuários e que uma vez que Zuckerberg é o presidente da empresa, ele deveria tomar sua parte nas ações que ocorrem desde que a pesquisa foi divulgada.
O senador democrata Edward Markey também mandou um recado direto ao presidente do Facebook, sugerindo a presença do empresário para prestar depoimento aos senadores americanos. "Aqui está minha mensagem para Mark Zuckerberg: seu tempo de invadir nossa privacidade, promover conteúdo tóxico e caçar crianças e adolescentes acabou”.
No depoimento, Frances ainda afirmou que Zuckerberg detém poder suficiente para estar a par da situação dos algoritmos da empresa e que o presidente tem condições de aprovar ou reprovar qualquer decisão tomada pela companhia sobre mudar a política das redes sociais ou ignorar os achados do estudo feito internamente.
"Não há ninguém atualmente responsabilizando Mark, exceto ele mesmo", disse ela.
Gentileza
Diferentemente do depoimento combativo de Antigone Davis e de outras audiências com CEOs de gigantes de tecnologia, o clima no Senado americano foi amistoso e receptivo com a ex-funcionária do Facebook nesta terça.
O senador Edward Markey chegou a chamar Frances de “heroína”. Enquanto Antigone foi interrompida várias vezes na semana passada para responder as perguntas com “sim ou não”, senadores disseram para a ex-funcionária do Facebook que “seria ótimo” se ela respondesse assertivamente. Além disso, o Congresso se mostrou interessado nas opiniões de Frances sobre mudanças em regulações.
Apesar de os documentos revelados pela ex-funcionária englobarem vários temas atrelados a moderação de conteúdo e algoritmos, as audiências no Senado têm se debruçado principalmente sobre o tema de crianças e adolescentes na rede social.
O dossiê de documentos também mostra como o Facebook tem sido negligente em assuntos como tráfico de drogas, além de permitir que celebridades e pessoas públicas, como o ex-presidente americano Donald Trump, violassem as regras de uso da plataforma. O material mostra que mesmo sob as regras das plataformas, de proibição de conteúdos com discurso de ódio ou de ataques, algumas pessoas, propositalmente, nunca passam pelo crivo de moderadores.
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