Documentos internos do Facebook, obtidos pelo Estadão, mostram que o alcance de conteúdos tóxicos como discurso de ódio, desinformação, violência explícita e desencorajamento cívico no Facebook são “particularmente maiores no Brasil, comparado a outros aplicativos”.
A informação aparece nos “Facebook Papers”, um pacote de documentos da empresa vazados para um consórcio internacional de veículos de imprensa, incluindo Estadão,New York Times, Washington Post, Guardian e Le Monde. As revelações fazem parte de divulgações feitas à Securities and Exchange Commission (SEC, na sigla em inglês), órgão regulador das empresas listadas em bolsa nos Estados Unidos. As informações foram fornecidas ao Congresso de forma editada pelo consultor jurídico de Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook que coletou pesquisas internas da rede social após pedir demissão em maio deste ano por discordar das atitudes da companhia.
Um dos arquivos, de 95 páginas, revela uma pesquisa realizada entre março e abril de 2020 com a intenção de entender as percepções de usuários em diferentes países sobre os produtos do Facebook – foram analisados Brasil, Colômbia, Índia, Indonésia, Japão, Estados Unidos e Reino Unido. O estudo tenta mapear as diversas experiências negativas dos usuários para saber se os apps do Facebook conseguem manter sua “integridade” – ou seja, em quais medidas os conteúdos violam ou não as regras dos serviços.
A empresa analisou 17 categorias de conteúdos e, em diferentes trechos do documento, cita o Brasil como um país onde é grande o alcance de conteúdo de baixa qualidade. Algumas categorias analisadas estão diretamente relacionadas à participação política e democrática: conteúdo cívico inflamatório, desencorajamento cívico, inautenticidade cívica, bullying cívico e conteúdo cívico falso ou enganoso. As outras são bullying, conteúdo falso ou enganoso, contas falsas, roubo de identidade, violência explícita, discurso de ódio, nudez, terrorismo, exposição infantil indevida, venda de animais, venda de drogas e profanidade.
Um dos trechos da pesquisa revela que 37% dos brasileiros entrevistados percebem conteúdo falso ou enganoso no Facebook, enquanto 30% se deparam com esse tipo de conteúdo no WhatsApp – o Brasil tem o maior índice no mensageiro entre todos os países participantes do estudo. No Twitter e no Snapchat, o número cai para 24% e 5%, respectivamente. A título de comparação, nos EUA, o Twitter tem a pior percepção, com 50% dos usuários, seguido pelo Facebook, com 46% – o WhatsApp aparece com 13%, o melhor resultado no país considerando todos os apps analisados.
Na pesquisa, o Facebook adotou um questionário com perguntas relativas não apenas aos seus apps do Facebook, mas também sobre rivais como Twitter, Snapchat, TikTok e Line (os dois últimos apenas em alguns países). Uma amostra de 5 mil pessoas de cada país foi selecionada para responder o formulário e cada usuário forneceu informações sobre apenas um aplicativo – o tamanho da amostra que respondeu sobre cada aplicativo, porém, não ficou claro no documento.
O estudo também coletou dados sobre a presença de usuários nas plataformas em cada país. No total, quase 100% dos entrevistados brasileiros possuíam uma conta no WhatsApp (o índice é o mais alto entre todos os países) – nos Estados Unidos, apenas 30% responderam usar o mensageiro, aproximadamente. Por aqui, pouco mais de 80% dos entrevistados também tinham conta no Facebook, cerca de 70% possuíam um perfil no Instagram e quase 50% estavam no Facebook Messenger.
Tipos de impacto
Outro trecho mede o quão mal os usuários se sentem ao se depararem na plataforma com problemas de integridade. No WhatsApp, os conteúdos tóxicos são percebidos mais intensamente na Indonésia, no Brasil e na Colômbia. Considerando a comparação entre os países analisados, os brasileiros têm a maior probabilidade de se sentirem mal ao encontrar conteúdos de terrorismo (70%) e violência explícita (70%), que considera atos violentos em mídias visuais.
O País também tem o segundo pior índice em discurso cívico inflamatório (70%), discurso cívico de bullying (58%), desinformação (46%), discurso de ódio (59%), nudez (52%) e exposição indevida de menores (79%). A Índia, maior mercado do WhatsApp, não aparece no topo de nenhum dos problemas – segundo o site Business Insider, os maiores mercados do WhatsApp no mundo em 2020 eram Índia, Brasil, EUA e Indonésia, nesta ordem.
Olhando para a rede social Facebook, os brasileiros têm a maior probabilidade de sentirem efeitos negativos de discurso cívico inflamatório (69%), violência explícita (71%), discurso de ódio (76%), nudez (67%), terrorismo (74%) e exposição indevida de menores (84%). No caso de discurso de ódio, especificamente, o País está 11 pontos percentuais à frente da Indonésia, que aparece com a segunda pior marca na categoria.
Já no Instagram, os brasileiros têm a maior probabilidade de sentirem efeitos negativos de discurso cívico inflamatório (68%) e exposição indevida de menores (76%).
Alertas de pesquisadores
Com frequência, os pesquisadores chamam atenção para o Brasil em notas destacadas nos documentos. As observações são encontradas, na maioria das vezes, como uma recomendação para equipes de pesquisa e investigação aprofundarem os estudos, a fim de tentar entender por que a percepção negativa ou de alcance de desinformação ou discurso de ódio era maior no Facebook e no WhatsApp do que em outros apps no País.
Nos documentos analisados pelo Estadão, não é possível saber quais ações foram tomadas pelo Facebook no Brasil frente aos problemas – a delatora Frances Haugen vem repetindo que Mark Zuckerberg sacrificou a segurança dos usuários pelo lucro da empresa. Os impactos negativos dos serviços no País, porém, foram detectados de maneira prolongada. Embora realizada entre março e abril de 2020, um comentário no documento mostra que a pesquisa foi publicada em um painel interno da empresa por volta de julho do ano passado – ou seja, há pelo menos um ano, o Facebook tem conhecimento dos aspectos problemáticos no País. O comentário também sugere que uma outra pesquisa encontrou resultados semelhantes. O Estadão ainda não encontrou o estudo anterior.
Contudo, em outro documento analisado pela reportagem, há indícios de que os pesquisadores da empresa sabem dos problemas causados no Brasil desde 2016. Em uma pesquisa publicada internamente em fevereiro de 2020, o Facebook tentava se preparar para as eleições presidenciais dos EUA em novembro do ano passado – uma das coisas que a empresa planejava evitar era a debandada de usuários, cansados do conteúdo político na plataforma. Então, um dos pesquisadores usou o Brasil como exemplo.
“Vimos (a debandada) acontecer no Brasil durante as duas últimas eleições. Muitas amizades foram perdidas, cansadas de ver o mesmo grupo de pessoas postando o mesmo conteúdo exagerado repetidas vezes”, comenta, em inglês, o funcionário cujo nome foi ocultado no documento. “O Facebook precisa aprender que nem todos os conteúdos de amigos são iguais. Não é porque eu sou próximo de alguém que eu necessariamente me importo com o que a pessoa pensa politicamente. É como mostrar futebol para alguém que não liga para o esporte. Espero que a gente possa fazer melhor nas próximas eleições”.
O que diz o Facebook
Sobre os vazamentos, o Facebook diz ao Estadão em nota: “A premissa central nestas histórias é falsa. Sim, somos um negócio e temos lucro. Mas a ideia de que lucramos às custas do bem-estar e da segurança das pessoas não compreende onde residem nossos próprios interesses comerciais.”
A companhia afirma que tem mais de 40 mil pessoas na equipe de integridade. “Apenas em 2021, devemos investir mais de US$ 5 bilhões em segurança e integridade, mais do que qualquer outra empresa do setor de tecnologia”, diz.
A reportagem apurou que parte dos funcionários da empresa considera que os estudos estão sendo apresentados fora de contexto – e que parte da percepção ruim em relação aos serviços foi construída sobre os “ataques recebidos nos últimos anos”.
Oficialmente, a empresa diz também: "Bilhões de pessoas no mundo, inclusive no Brasil, usam nossos serviços porque veem utilidade neles e têm boas experiências. Já investimos US$ 13 bilhões em segurança globalmente desde 2016 - estamos a caminho de investir US$5 bilhões só neste ano".
A empresa relembra ações que considera importante para melhorar a experiência dos usuários: "Investimos em pesquisas internas para ajudar a identificar de forma proativa onde podemos melhorar nossos produtos e políticas. Como parte de nossos esforços de integridade no Brasil, trabalhamos para proteger as eleições de 2020 e estabelecemos uma parceria com o Tribunal Superior Eleitoral em iniciativas de combate à desinformação e na criação de um canal para que pudessem denunciar contas do WhatsApp potencialmente envolvidas em disparos em massa."
Em relação ao documento que traz a pesquisa sobre a percepção dos brasileiros, o Facebook também diz: "Os resultados desta pesquisa não medem a prevalência ou a quantidade de um determinado tipo de conteúdo nos nossos serviços. A pesquisa mostra a percepção das pessoas sobre o conteúdo que elas veem nas nossas plataformas. Essas percepções são importantes, mas dependem de uma série de fatores, incluindo o contexto cultural. Divulgamos trimestralmente a prevalência de materiais que violam nossas políticas e estamos sempre buscando identificar e remover mais conteúdos violadores."
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