Nos últimos 5 anos, o Facebook viveu o período de maior turbulência da história da empresa, fundada em 2004: a rede social enfrentou episódios como interferência russa nas eleições americanas de 2016, acusações de conivência com a desinformação e o caso Cambridge Analytica, que permitiu que a firma britânica de marketing político coletasse sem consentimento as informações de 87 milhões de usuários. No livro “Uma Verdade Incômoda”, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras, as jornalistas Sheera Frenkel e Cecilia Kang, do jornal americano The New York Times, mostram que os escândalos foram fruto da cultura da companhia, que valorizou o crescimento a qualquer custo em detrimento da segurança e privacidade das pessoas.
Sheera, que acompanha temas de cibersegurança, e Cecilia, especialista em tecnologia e política regulatória, fizeram mais de mil horas de entrevistas com mais de 400 pessoas – entre elas, executivos, funcionários, ex-funcionários e investidores da empresa. “O Facebook poderia argumentar que não teria como prever os problemas, mas o livro mostra que, mesmo quando eles foram avisados de que algo ruim aconteceria, não agiram para conter”, afirma Sheera em entrevista por videochamada com o Estadão, da qual as duas autoras participaram.
Ao longo de 364 páginas, com a junção dos relatos, as jornalistas explicam a lógica do modelo de negócios do Facebook e expõem detalhes da liderança do fundador e presidente executivo da empresa, Mark Zuckerberg, e de Sheryl Sandberg, diretora de operações – o livro aborda o período das eleições de 2016 nos EUA até a suspensão de Donald Trump da plataforma, em janeiro deste ano, após a invasão ao Capitólio.
“Até ficar claro como o Facebook vai punir políticos, qualquer líder no mundo pode abusar da plataforma e usar as ferramentas poderosas da empresa não só para turbinar campanhas próprias, mas potencialmente causar danos”, diz Cecilia.
Na entrevista a seguir, as autoras também comentam a estratégia da rede social e especificidades da companhia no Brasil, que é o segundo maior mercado do WhatsApp, aplicativo de mensagens do Facebook, atrás apenas da Índia. Confira os melhores momentos.
O livro coloca em um mesmo pacote problemas como violação de privacidade, fake news, discurso de ódio, interferência em eleições e monopólio. Como tudo isso está relacionado ao modelo de negócios do Facebook?
Sheera: Vários desses problemas pareciam desconectados no começo, mas muitos se relacionavam com o fato de o Facebook não ter priorizado consertá-los em detrimento do crescimento. Para continuar crescendo e se tornar maior todo ano, eles tiveram de criar algoritmos para manter as pessoas usando o Facebook pela maior quantidade de tempo possível.
Cecilia: Essencialmente, o modelo de negócios do Facebook é prender a atenção dos usuários – e, por conta disso, várias dessas questões surgiram. Enquanto os usuários estavam engajando constantemente e gerando dados para o Facebook, aconteceram abusos de privacidade. Atores estrangeiros manipularam a plataforma para disseminar informações falsas e interferir em eleições porque eles sabiam que as pessoas estavam muito engajadas. Toda essa desinformação está relacionada a um negócio novo, sem precedentes, que tem como foco conquistar a atenção dos usuários.
No começo, o Facebook poderia ter previsto os problemas que vieram a surgir? O livro mostra que a empresa tinha poucas diretrizes e agia no improviso, mas, ao mesmo tempo, as redes sociais eram um mundo novo.
Sheera: É possível argumentar que o Facebook não poderia ter previsto no começo, mas certamente a empresa recebeu avisos ao longo do caminho. No caso da interferência russa nas eleições americanas dos Estados Unidos, em 2016, uma das coisas que mostramos no livro é que várias pessoas deram avisos. Países europeus avisaram o Facebook de que a Rússia estava tentando interferir nas eleições deles em 2014 e 2015. Durante as eleições dos EUA, o Facebook foi avisado também pelo seu próprio time de segurança, mas ninguém ouviu. O Facebook poderia argumentar que não teria como prever, mas o livro mostra que, mesmo quando eles foram avisados de que algo ruim aconteceria, eles não agiram para conter.
Cecilia: Sheryl Sandberg, Mark Zuckerberg e outros executivos – incluindo o diretor de produtos, Chris Cox – adoram apontar para a história e dizer que o que estamos vendo hoje em termos de problemas e controvérsias ocorreu com todas as plataformas de comunicação um dia, como rádio e televisão. Eles dizem que esses serviços inicialmente também geraram alarde na sociedade, mas que depois todo mundo se adaptou às introduções tecnológicas. A ironia é que eles deveriam saber que a história da mídia, por exemplo, mostra que líderes políticos ao redor do mundo abusaram de propaganda e desinformação – as plataformas de comunicação tiveram de lidar com essas situações. Como a prioridade número um era crescimento, identificar problemas de segurança ficaram em segundo plano. Afinal, como dizem, uma startup acelera e atropela as coisas.
Falhas de comunicação dentro do Facebook contribuíram para os escândalos? No livro, em alguns momentos, fica a impressão de que Mark Zuckerberg e Sheryl Sandberg não se comunicam adequadamente com os funcionários e que eles não prestam atenção suficiente em problemas de segurança.
Sheera: Eles poderiam argumentar que Sheryl e Zuckerberg não sabiam, porque estavam comandando muitas coisas. Em algumas vezes, as informações não chegaram até eles, mas, em outras, pareceu mais uma cegueira. Pensando no caso da Rússia, por exemplo, eles foram avisados pelo então diretor de segurança digital, Alex Stamos, logo após as eleições, que houve tentativas de interferência – o time de segurança estava analisando isso. Eles permitiram que Stamos reunisse um grupo para investigar o problema a fundo, mas Sheryl e Zuckerberg não se envolveram nas necessidades diárias do problema. Eles não tiveram esse nível de interesse até o verão de 2017, um ano depois, quando foi comunicada a descoberta de uma atividade significativa. Foi uma escolha deles como líderes da companhia não levar a questão a sério até esse ponto.
Poucas ‘big techs’ hoje têm fundadores como CEOs. O último caso foi Jeff Bezos deixando o comando da Amazon. Como seria um Facebook sem Mark Zuckerberg?
Sheera: Atualmente, Mark Zuckerberg está no controle do Facebook como nunca esteve antes. Ele olhou para os últimos cinco anos e viu que cometeu erros. Então, decidiu assumir o controle de partes da empresa que normalmente deixava a cargo de outras pessoas. O Facebook sem Zuckerberg seria uma empresa muito diferente, mas haveria uma grande reestruturação, porque hoje existe uma hierarquia forte com ele no topo da pirâmide. Acho que seria uma nova estrutura, com um grupo de pessoas tomando decisões que hoje estão nas mãos de Zuckerberg.
O livro fala sobre o crescimento do Facebook em culturas não-americanas. Como países como o Brasil foram afetados pelo imperativo da empresa de expansão a qualquer custo?
Sheera: Acredito que o restante do mundo além dos Estados Unidos provavelmente tem sido impactado de forma ainda mais séria pelas políticas do Facebook. A empresa não tem o mesmo nível de visibilidade e moderação no resto do mundo como nos EUA. O que dá errado aqui, como desinformação e discurso de ódio, acontece dez vezes pior em outros países. Zuckerberg disse que queria o próximo bilhão de usuários e ninguém questionou quais seriam as consequências, quais danos poderiam ser causados e como a plataforma poderia ser usada em países que convivem com ditaduras, por exemplo. O Facebook ainda está lidando com esses efeitos negativos.
Diferentemente dos Estados Unidos, no Brasil o WhatsApp talvez seja a ferramenta mais poderosa do Facebook. Mas o app é uma rede privada sem anúncios, principal receita da empresa nas outras plataformas. Como o WhatsApp se relaciona com o resto do modelo de negócios do Facebook?
Cecilia: Estamos começando a ver a empresa integrando o WhatsApp no universo maior do Facebook – eles começaram a mesclar a base dos aplicativos. De fato, hoje não há anúncios no WhatsApp. Mas o app de mensagens agora está integrado ao Facebook e ao Instagram, então uma loja que vende pelo Facebook consegue se comunicar pelo WhatsApp. É importante entender que o WhatsApp oferece algo muito relevante para o Facebook: ele possui dois bilhões de usuários, que são contatos com grandes bancos de dados em seus aplicativos. O objetivo final seria usar isso como um trampolim para as interações sociais, dentro do universo maior do Facebook. Vamos começar a ver integrações cada vez maiores.
O Brasil terá eleições em 2022. Que tipos de problema com o Facebook (incluindo o WhatsApp) devemos enfrentar? Há alguma forma de evitá-los?
Sheera: Para evitar problemas ao redor das eleições, há algumas abordagens que especialistas recomendam seguir. Um caminho é a rotulagem mais clara das publicações do Facebook – ou seja, se determinada postagem é falsa, colocar um selo bem visível dizendo que não é verdade. E deve ser rápido, porque, atualmente, pode demorar um dia ou dois para aprovar um rótulo, enquanto milhões de pessoas vêem a publicação. Tomar atitudes rápidas e aprovar rótulos antes de as postagens viralizarem são coisas que especialistas recomendam. É algo contra a lógica do Facebook, que permite que as coisas viralizem. Essas práticas demandam que as coisas andem mais devagar, o que não é intuitivo para a rede social.
Cecilia: Uma das coisas mais importantes que o Facebook tem de resolver é como eles vão lidar com líderes políticos. O que a chamada “relevância noticiosa” (em que a empresa pondera o caráter de relevância noticiosa do conteúdo contra a propensão a causar danos) significa para líderes como Jair Bolsonaro? Ele deveria poder usar a plataforma, como Donald Trump fez, para espalhar desinformação e discursos que podem incitar a violência? Bolsonaro pode usar a rede social de uma forma que qualquer outro usuário não poderia, de acordo com as regras do Facebook? Até ficar claro como eles vão punir políticos, como Bolsonaro, acho que qualquer líder no mundo pode abusar da plataforma e usar as ferramentas poderosas da empresa não só para turbinar campanhas próprias, mas potencialmente causar danos.
A pressão crescente de regulação pode mudar o coração do modelo de negócios do Facebook?
Cecilia: Estamos vendo governos ao redor do mundo tentando regular o Facebook e outras plataformas da internet. A pressão só vai se intensificar e a regulação tende a se tornar um fator cada vez mais importante para o Facebook. Atualmente, é difícil apontar as empresas como responsáveis porque não há leis nos Estados Unidos para isso, como normas de privacidade. Não acho que as regulações faladas nos últimos anos afetem o sistema principal do Facebook. O melhor exemplo disso foi quando o Facebook, em 2019, foi multado em US$ 5 bilhões pela FTC (Comissão Federal de Comércio americana) por violação de dados. Depois da punição, o preço das ações subiram, porque a dor de cabeça finalmente estava fora do Facebook – eles tinham agora uma multa e não era muito dinheiro para a empresa. Investidores encararam como um custo de fazer negócios. Acho que multas como essa não contribuem muito para frear o poder do Facebook.
Para os usuários, há uma forma saudável de usar o Facebook? Ou o caminho é deletar os aplicativos?
Sheera: Cecilia e eu usamos o Facebook para nosso trabalho e também para nos conectarmos com as pessoas. Acho que é possível usar com moderação, entendendo o produto que você está usando. Passar o dia todo em qualquer plataforma, seja o Facebook, o YouTube ou o Twitter, não é saudável. Uma forma saudável é entender que há algoritmos tentando fazer você passar mais tempo na plataforma, usar por alguns minutos e não se envolver em teorias da conspiração e desinformação.
Cecilia: Nós usamos, mas avaliamos a forma como usamos, tentando entender a máquina que está por trás das plataformas. Esperamos que as pessoas que leiam o livro tenham esse entendimento também.
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