THE WASHINGTON POST - Enquanto os órgãos reguladores da União Europeia se preparavam para implementar uma lei que prejudicaria pesos pesados dos EUA, como Apple e Google, as cartas chegavam à Casa Branca.
Um grupo de associações do setor reclamou com o presidente Biden que a Europa havia usado “subterfúgios” para “prejudicar as empresas americanas”. Um grupo de membros do Congresso lamentou a lei da UE como “discriminação de fato contra empresas e trabalhadores dos EUA” e alertou que ela daria uma vantagem à China e à Rússia.
O governo do presidente Joe Biden enviou duas cartas oficiais de protesto a Bruxelas levantando preocupações, mas não chegou a insistir na questão, segundo pessoas familiarizadas com o assunto. Havia pontos de vista diferentes dentro do governo sobre se deveria ser papel de Washington se unir aos interesses comerciais das gigantes de tecnologia.
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Havia também uma guerra na Ucrânia, um desafio crescente da China e uma série de outras questões para as quais os funcionários do governo Biden queriam a cooperação europeia. Eles não iriam inviabilizar o relacionamento transatlântico por causa dessas empresas.
“O governo Biden tomou uma decisão intencional e fez um esforço conjunto para trabalhar com a União Europeia”, disse Jorn Fleck, diretor sênior do Centro Europeu do Atlantic Council. “Não apenas com a ‘Europa’ em geral, não apenas por meio da Otan, que é o caminho tradicional, não apenas por meio das relações bilaterais com os principais países da Europa, mas especificamente também com a UE.”
Como funciona a lei
A Lei dos Mercados Digitais da Europa (ou DMA, na sigla em inglês) está agora totalmente em vigor, sendo quinta-feira, 7, o prazo final para as empresas entrarem em conformidade. Isso exigiu que seis empresas de tecnologia - das quais cinco são americanas - fizessem mudanças significativas em suas ofertas na União Europeia, cujos 27 estados membros formam a segunda maior economia do mundo, depois dos Estados Unidos.
Talvez o mais notável seja o fato de que a Apple começará a permitir lojas de aplicativos de terceiros em iPhones para usuários da UE, abrindo seu ecossistema. O Google apresentará aos usuários de telefones Android uma “tela de escolha” para que eles possam abandonar facilmente o navegador da Web e o mecanismo de busca do Google, se desejarem. A Meta permitirá que outros serviços de mensagens se conectem ao WhatsApp e ao Messenger na União Europeia e dará aos usuários a opção de desvincular suas contas do Facebook e do Instagram.
A Microsoft está permitindo que os usuários da UE desativem a pesquisa na Web do Bing no Windows. A Amazon solicitará o consentimento dos clientes da UE para o uso de seus dados para personalização de anúncios. O TikTok está permitindo que os usuários da UE façam o download de um conjunto completo de seus dados.
“É a primeira grande jurisdição a tentar regulamentar as plataformas digitais”, disse a economista de Yale, Fiona Scott Morton, americana que foi nomeada economista-chefe de concorrência da Comissão Europeia no ano passado, mas que se retirou em meio a reações contrárias por não ser europeia. Ela disse que a DMA “adota a abordagem de que a maneira de obter mais concorrência é ter concorrência na plataforma, em vez de necessariamente tentar substituir a plataforma”.
O que causou indignação no setor americano é que cinco das seis empresas sujeitas à regulamentação da DMA têm sede nos Estados Unidos: Amazon, Apple, Microsoft, a Alphabet, empresa controladora do Google, e a Meta, empresa controladora do Facebook. A sexta, a ByteDance, empresa controladora do TikTok, tem sede na China.
As autoridades da UE dizem que aplicaram critérios neutros para determinar quais empresas eram poderosas o suficiente para serem consideradas “guardiãs” da internet - ou gatekeepers -, ou seja, que concentram grande parte dos acessos em suas próprias plataformas.
Um porta-voz da Comissão Europeia disse que os órgãos reguladores agirão rapidamente se as empresas desrespeitarem a DMA, com multas de até 20% da receita global de uma empresa para infratores reincidentes. “Estamos prontos para tomar medidas decisivas de fiscalização, fazendo uso de todas as ferramentas disponíveis no DMA”, disse o porta-voz, acrescentando que todos os casos de não conformidade serão finalizados em um ano.
Os efeitos imediatos para os consumidores dos EUA são limitados, embora os economistas digam que a mudança da UE poderia levar outros países a seguir o exemplo.
Nos Estados Unidos, alguns legisladores têm se esforçado para aprovar uma lei semelhante à DMA, mas até agora não obtiveram sucesso, pois a regulamentação antitruste é vista com mais ceticismo do que na Europa. O Congresso está considerando reduzir em US$ 45 milhões o orçamento solicitado para a divisão antitruste do Departamento de Justiça, que tem dois processos judiciais antimonopólio contra o Google e uma investigação sobre a Apple em andamento.
Problemas recorrentes
O abuso de uma posição dominante no mercado há muito tempo é ilegal nos Estados Unidos e na União Europeia. A Comissão Europeia aplicou uma multa de quase US$ 2 bilhões à Apple na segunda-feira, 4, em uma investigação antitruste separada, por questões levantadas pelo serviço de streaming de música Spotify. Mas a DMA fornece detalhes muito mais esmiuçados para o setor de internet, proibindo os gatekeepers de impedir que rivais menores criem aplicativos em pé de igualdade, dificultando a troca de serviços entre usuários ou acumulando dados pessoais em vários serviços sem obter a permissão dos usuários.
Essas disposições mais rígidas estão se mostrando problemáticas para o governo Biden, cujas preocupações com a lei incluem a questão de que exigir que as empresas permitam acesso a lojas de aplicativos de terceiros possam aumentar as vulnerabilidades de segurança cibernética. Mas com a Comissão Federal de Comércio e o Departamento de Justiça de Biden assumindo posições fortes no combate aos danos ao consumidor dessas empresas, o governo está dividido sobre as questões.
Isso fez com que os funcionários do governo tivessem receio de falar sobre o assunto, depois de serem criticados tanto por ir contra o DMA quanto por apoiá-lo demais.
A Casa Branca, a Comissão Federal de Comércio e o Departamento de Justiça se recusaram a fazer comentários para esta matéria.
Enquanto isso, Washington tem priorizado as questões de segurança em conversas recentes com a União Europeia, especialmente a guerra na Ucrânia e a contenção da China.
“A situação da Ucrânia sugou o oxigênio da sala”, disse um executivo do setor dos EUA sobre o relacionamento entre os EUA e a UE. “O governo Biden trabalhou muito para colocar os europeus e os EUA na mesma página quando se trata de questões do tipo segurança nacional.”
Quando se trata de questões comerciais “básicas” entre os Estados Unidos e a Europa, como a regulamentação das grandes empresas de tecnologia, ele disse que “há muita coisa para cobrir as diferenças. Não há muita coisa de fato para arregaçar as mangas e resolver essas diferenças”.
Essa abordagem incomodou alguns, que preveem um impacto negativo sobre as empresas de tecnologia dos EUA.
“Infelizmente, o governo tem se mantido distante, e isso é decepcionante”, disse Adam Kovacevich, CEO da Chamber of Progress, uma associação comercial que conta com a Apple, a Amazon e o Google como parceiros. Ele disse acreditar que o DMA terá um efeito inibidor sobre os tipos de serviços disponíveis para os consumidores da UE e que a lei “terá um desdobramento desastroso”.
Mas ela também recebeu elogios. Gene Kimmelman, que foi procurador-geral adjunto do Departamento de Justiça no início da presidência de Biden, chama a DMA de um “momento decisivo” que abrirá oportunidades para desenvolvedores de aplicativos na Europa e proporcionará transparência aos consumidores. Ele elogia o governo Biden por não defender apenas os interesses financeiros das empresas de tecnologia dos EUA.
“Com muita frequência, os representantes comerciais dos EUA, do Departamento de Comércio e do Departamento de Estado dos governos, apresentam uma visão bastante nacionalista e pró-empresa dos EUA. Esse não foi o caso do governo Biden”, disse Kimmelman. “Eles têm se mostrado muito abertos à abordagem europeia e a não tentar apenas dar cobertura às grandes plataformas de tecnologia.”
Enquanto lida com os pontos de vista díspares em Washington, o governo Biden manteve suas discussões sobre o DMA com os colegas da UE em grande parte a portas fechadas.
No final de janeiro, altos funcionários dos EUA sentaram-se em uma longa mesa com seus colegas da UE na recém-reformada sala Benjamin Franklin do Departamento de Estado. “Vamos nos concentrar na segurança econômica”, disse o Secretário de Estado Antony Blinken, mencionando questões como as sanções à Rússia, o combate à China e a criação de cadeias de suprimentos resilientes - uma referência a tecnologias como chips e equipamentos de telecomunicações com aplicações militares.
O relatório da Casa Branca sobre a reunião omitiu a menção ao DMA. Porém, quando o vice-presidente executivo da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, foi questionado sobre o assunto em uma coletiva de imprensa, ele reconheceu que o DMA teve “destaque” em suas discussões a portas fechadas.
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