A indústria de tecnologia viveu nesta quarta-feira, 29, um momento histórico, com o depoimento simultâneo de Jeff Bezos, Sundar Pichai, Tim Cook e Mark Zuckerberg no Congresso dos EUA. Presidentes executivos de Amazon, Google, Apple e Facebook, respectivamente, eles tiveram de responder a perguntas sobre concorrência desleal, aquisições, uso de dados de clientes e competidores e até sobre hidroxicloroquina em uma sessão que durou mais de seis horas. Mais do que isso, viram seus modelos de negócios serem postos em xeque, no que pode ser o princípio de uma mudança significativa no status quo de quatro das cinco maiores empresas do setor no mundo, com valor de mercado somado que beira os US$ 5 bilhões.
Realizado pelo comitê antitruste da Câmara dos Deputados, o depoimento foi realizado parte ao vivo em Washington e parte por videoconferência – os quatro líderes falaram à distância, com uso do software Webex, da Cisco, que não é controlada por nenhuma das quatro empresas. A sessão foi o ponto culminante de uma investigação que já dura treze meses e amealhou 1,3 milhão de documentos. “Todas essas empresas são muito poderosas. Algumas precisam ser quebradas e outras, melhor reguladas. Seu monopólio deve acabar”, disse o presidente da sessão, o deputado democrata David Cicilline, ao final de quase seis horas de falas.
Violação
Um grupo de documentos, revelado ontem, pode mudar dramaticamente o Facebook: um conjunto de e-mails trocados por Mark Zuckerberg mostra que, antes de adquirir o Instagram, ele via o aplicativo de fotos como um competidor e, por isso, decidiu comprá-lo por US$ 1 bilhão em 2012.
“O Instagram pode nos causar dano”, teria escrito Zuckerberg ao diretor financeiro do Facebook na época. Durante a sessão, Zuckerberg reafirmou essa visão e concedeu o mesmo status de competidor ao WhatsApp, comprado pela empresa em 2014 por US$ 19 bilhões. Feita sob julgamento, a afirmação pode colocar o Facebook em problemas, uma vez que comprar um competidor direto pode ir contra a lei de antitruste americana. “A aquisição do Instagram pelo Facebook se enquadra no que as leis foram desenhadas para prevenir. É algo que não poderia ter sido aprovado”, disse o deputado democrata Jerry Nadler, de Nova York.
Em resposta, Zuckerberg mencionou que a aquisição não enfrentou oposição na época. Hoje, porém, o cenário mudou: o órgão está hoje analisando ativamente aquisições feitas na área de tecnologia e pode chegar a uma conclusão diferente, revertendo eventualmente as transações e transformando Instagram e WhatsApp em empresas separadas – algo que aconteceu no passado com a indústria de petróleo (Standard Oil) e de telecomunicações (AT&T).
Durante o depoimento, o Facebook também foi acusado de usar ferramentas de vigilância como o Onavo e o Facebook Research para descobrir dados e tendências de uso de apps rivais e assim, comprá-los ou copiá-los. Em um dos momentos mais tensos da tarde, a deputada Pramila Jayapal perguntou a Zuckerberg se ele tentou clonar um produto de um rival após não conseguir comprá-lo, em uma referência ao Snapchat, cujas funções de mensagens efêmeras apareceram no WhatsApp e no Instagram depois que a empresa recusou uma oferta do Facebook. Zuckerberg negou, afirmando que “adaptou funções criadas por outros”. A deputada respondeu: “lembre-se que você está sob juramento”, dando a entender que ele estaria mentindo e poderia ser incriminado por isso.
Uso de dados
Outro tema bastante presente durante o julgamento foi o do uso, pelas quatro gigantes, de dados de consumidores e concorrentes para influenciar seus negócios. A Amazon, por exemplo, foi acusada de usar dados de parceiros que usam sua plataforma para determinar que tipo de produtos a gigante deve desenvolver.
Durante a sessão, Jeff Bezos disse que a empresa tem uma política para prevenir isso, mas não pode garantir à deputada democrata Pramila Jayapal que “a prática nunca tenha sido violada.” Bezos também foi acusado de praticar preços anticompetitivos para afetar um site rival, o Diapers.com, que vendia fraldas e produtos para bebês, antes de comprá-lo em 2010, por um preço abaixo do mercado.
O homem mais rico do mundo, com fortuna avaliada em cerca de US$ 180 bilhões, também admitiu que constantemente vende sua caixa de som conectada, Amazon Echo, abaixo do preço de produção, e que a assistente de voz da empresa, Alexa, direciona consumidores para produtos da própria Amazon, em duas atitudes que poderiam ser caracterizadas como concorrência desleal.
Sundar Pichai, do Google, também teve de responder a acusações sobre uso de dados de competidores. O democrata David Cicilline, presidente da comissão, começou o depoimento acusando o Google de roubar resenhas da companhia Yelp e afirmou que a empresa ameaçou retirar a Yelp de resultados de busca se se colocasse contra a prática. Pichai respondeu que preferia saber os pontos específicos da acusação. “Nós agimos de acordo com os mais elevados padrões”, disse o executivo, rejeitando a acusação.
Cicilline também citou emails de “mais de uma década” entre empregados do Google, discutindo sobre sites que estavam crescendo em tráfego. Segundo o democrata, os empregados “temiam que a competição vinda de certos sites pudessem reduzir a receita da empresa” e consideraram reduzir sua presença nos resultados da busca da empresa.
Com presença mais discreta durante o depoimento, Tim Cook, da Apple, respondeu uma grande quantidade de questões sobre o poder que sua empresa tem com a App Store, loja de aplicativos presente no iPhone – a fabricante pode vetar apps na loja e cobra de muitos deles uma comissão de até 30% sob os pagamentos feitos por usuários. Na sessão, Cook ressaltou que a empresa veta apps para proteger os usuários e não para “retaliar”, algo que está sob investigação não só nos EUA, mas na Europa – no Velho Continente, o Spotify acusa a Apple de abusar de seu poder para ganhar espaço no mercado de streaming de música, por exemplo.
China
Responsável por algumas das maiores empresas de tecnologia do mundo hoje, como Tencent, Alibaba e Baidu, a China foi bastante citada durante o depoimento, especialmente em tom de ameaça ao poder das empresas americanas. Quem levantou a bola foi Zuckerberg, que hoje vê seus negócios serem ameaçados por uma rede social asiática, o TikTok, da Bytedance – o CEO do Facebook defendeu que regular empresas americanas aumentaria o poder de companhias chinesas, que não se pautam por valores “americanos”, como democracia, livre concorrência e liberdade de expressão.
Foi algo que vários deputados também levantaram como preocupação. Por vezes, porém, a discussão sobre China ganhou ares de teoria da conspiração, quando o republicano Greg Steube chegou a perguntar se os presidentes executivos sabiam de casos de roubos de tecnologia por parte do governo chinês – Pichai e Cook negaram, enquanto Bezos disse já “ter lido relatórios sobre” e Zuckerberg afirmou veementemente.
‘Censura’ e cloroquina
Uma boa parte do depoimento realizado nesta quarta-feira, porém, não versou sobre temas de concorrência econômica, mas sim sobre liberdade de expressão e moderação de conteúdo. Diversos deputados republicanos questionaram Pichai e Zuckerberg sobre o porquê de determinados conteúdos ligados a um ponto de vista conservador são removidos ou censurados do Facebook e do YouTube, por exemplo.
Greg Steube, da Flórida, reclamou de não poder ver um vídeo sobre médicos falando que a hidroxicloroquina seria um tratamento válido para o coronavírus. Em resposta, Sundar Pichai disse que o YouTube segue regras e orientações das autoridades de saúde para remover conteúdo que pode causar danos a quem assisti-lo – hoje, não há comprovação de que o medicamento tem eficiência alguma contra a covid-19.
Já Jim Jordan, de Ohio, chegou a fazer Pichai prometer que não vai favorecer o democrata Joe Biden contra o candidato de seu partido, o atual presidente Donald Trump – constrangido, o presidente do Google afirmou que não favorece nenhum candidato. Na sequência, a deputada democrata Mary Gay Scanlon, da Pensilvânia, disse que iria voltar ao debate econômico e não de “teorias conspiratórias”, o que fez Jordan berrar nos microfones. O clima só voltou ao normal depois que Cicilline, presidente da sessão, pediu a Jordan para se acalmar e colocar de novo sua máscara, em um perfeito sinal dos tempos.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.