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Gordura ‘de laboratório’ é aposta da startup Cellva para revolucionar alimentação

Empresa trabalha em produto criado a partir de células extraídas de porcos; ‘Estadão’ pode provar linguiça vegetal feita com o ingrediente

Por Bruno Capelas, especial para o ‘Estado’ - Estadão
Atualização:

Na gastronomia brasileira, a banha de porco é um dos ingredientes mais tradicionais que existem – além de ser usada para cozinhar e fritar alimentos, a banha também já foi bastante utilizada como conservante em carnes, por exemplo. Mas há quem esteja de olho em rever essa tradição de maneira mais tecnológica. É o caso da startup Cellva, que trabalha atualmente no desenvolvimento de gordura cultivada em laboratório: um produto cuja base são células extraídas de porcos e alimentadas dentro de biorreatores, sem necessidade de abater o animal.

Fundada em 2022 por um ex-executivo da BRF, Sérgio Pinto, e uma pesquisadora especializada em biotecnologia, Bibiana Matte, a Cellva hoje é capaz de produzir 20 gramas de gordura de porco a cada 21 dias, em seu laboratório sediado em Porto Alegre. Para isso, a empresa faz uma biópsia num porco, o que lhe permite ter acesso a um banco de células do animal. Após serem catalogadas e organizadas, as células são alimentadas em biorreatores com proteínas, carboidratos e sais minerais para gerar seu crescimento, até o tamanho desejado pela empresa.

A Cellva foi fundada em 2022 pelo ex-executivo da BRF, Sérgio Pinto, e pela pesquisadora especializada em biotecnologia, Bibiana Matte Foto: Daniel Teixeira/Estadão

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A Cellva não está sozinha no mercado de desenvolvimento de alimentos de origem animal, mas criados a partir de células: nos EUA e em Singapura, já há até empresas com licenças governamentais para fabricar hambúrgueres e outros itens de proteína em laboratório, enquanto startups como a Finless Foods olham para mercados como peixes e frutos do mar.

Além disso, grandes grupos como BRF e JBS já tem investimentos na área – a dona de marcas como Sadia e Perdigão investiu na startup israelense AlephFarms, enquanto a holding de Swift e Seara já anunciou investimentos de R$ 300 milhões para um laboratório de biotecnologia em Florianópolis. A diferença é que enquanto muitos olham para as proteínas, a Cellva pretende atuar com gorduras. “Muita gente não pensa em gordura por questões estéticas, mas é um elemento que tem funções importantes para o organismo”, diz Sérgio Pinto, CEO da empresa.

Experimentação da gordura de laboratório

Na última semana, em São Paulo, a empresa apresentou os primeiros resultados de suas pesquisas em evento no restaurante vegetariano Green Kitchen, permitindo que repórteres provassem a gordura pela primeira vez. Como o produto ainda não tem aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser experimentado, a reportagem teve de assinar um termo de responsabilidade – e avisa que passa bem após a ingestão do produto da Cellva.

Primeiro, foi possível observar e até provar uma pequena colher de café com a gordura em estado puro. Tanto no visual como no paladar, o ingrediente tem um aspecto gelatinoso, um pouco mais aguado do que se poderia esperar, mas com aquele sabor característico de porco no céu da boca. Depois, a gordura da Cellva foi usada pelo chef Vitor Aspirino, do restaurante vegetariano Green Kitchen, na elaboração de uma linguiça com proteína de ervilha – parte do cardápio da casa, a receita é normalmente feita com uma combinação de óleos vegetais, incluindo azeite e óleo de coco. O resultado da troca pelo produto da startup gerou uma linguiça com maior proximidade àquela que muita gente está acostumada a comer em um churrasco de domingo.

Essa característica de “proximidade” é justamente uma das marcas que a Cellva pretende utilizar para vender seu produto por aí. “Já tivemos várias revoluções na alimentação, como produtos orgânicos e também os produtos plant-based, que usam vegetais como imitação de carne, mas o consumidor não aderiu com tanto entusiasmo como se imaginava”, afirma Pinto. “Há um motivo para isso: muito da alimentação é baseado em memória afetiva, no que você já comeu antes ou tem memória, e o consumidor quer isso. Podemos mudar o mercado porque nosso produto não é “tipo” carne, ele é carne”, complementa o executivo, fazendo a ressalva de que seu produto não é vegetariano nem vegano.

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Linguiça preparada pelo chef Vitor Aspirino com gordura cultivada em laboratório pela empresa Cellva Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Para ele, a gordura da Cellva pode atrair quem optou por deixar de comer produtos de origem animal por conta da crueldade, ou mesmo por conta do impacto causado no meio ambiente. “Nossa gordura pode ser feita em 21 dias, já a da pecuária leva três anos para ser feita, o que nos permite um ciclo de inovação rápido. Além disso, podemos produzir uma gordura que afete menos a saúde, reduzindo o nível de gordura saturada e de ácidos graxos, por exemplo, já que usamos o laboratório”, afirma Pinto.

O impacto que uma empresa como a Cellva pode causar no meio ambiente, porém, ainda é uma incógnita – críticos e especialistas levantam a hipótese de que alimentar as células e os biorreatores podem demandar enorme quantidade de recursos e de energia elétrica, o que aumentaria a pegada da “comida celular”. Questionado sobre o tema, o executivo afirma que a empresa utiliza apenas energia de fontes renováveis – como usinas solares e hidrelétricas – e que os rejeitos de sua produção são convertidos em biogás, reaproveitado também na geração de energia.

Obstáculos

Para o leitor que já está pensando em preparar uma receita com a gordura de porco celular da Cellva, é melhor pensar em outros ingredientes, por diferentes motivos. O primeiro é que, ao contrário de outras companhias que já desenvolvem carne e outros tipos de proteína dentro de laboratórios, a Cellva não pretende vender seus produtos para o consumidor final. “Queremos atender a indústria de alimentos, com nosso ingrediente, trazendo um produto que não faça mal para o ambiente e para os animais, mas que traga pro consumidor a mesma experiência que ele já conhece”, diz Sérgio Pinto, CEO da startup.

Detalhe da linguiça preparada com gordura cultivada em laboratório pela empresa Cellva Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A escalabilidade também é outro desafio da empresa, uma vez que a quantidade de gordura que a empresa pode produzir depende de um número grande de biorreatores. Segundo o CEO da Cellva, ele e sua sócia investiram cerca de R$ 1 milhão do próprio bolso para os estágios iniciais de desenvolvimento do produto. Para avançar, a empresa busca uma rodada de captação, que lhe permita multiplicar em 10 vezes sua produção e ajude a empresa a passar por uma regulação futura dos órgãos responsáveis. A ambição, porém, tem um horizonte bem maior. “Queremos ter uma fábrica pronta até o final de 2025 e produzir 11 mil toneladas de gordura até o final dessa década, em 2030″, afirma Pinto. Além disso, será importante verificar se a qualidade e saudabilidade do produto se mantém em larga escala.

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Ter a aprovação dos órgãos reguladores é outro passo importante no futuro da Cellva: a regulamentação de produtos cultivados em laboratório deverá ser feita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mas ainda não tem data para começar a acontecer. De acordo com Sérgio, a expectativa é que a regulação aconteça até o final do ano que vem. Na visão do executivo, porém, ter o poder público de olho no setor é importantíssimo. “O Brasil é uma potência do ponto de vista de produção de alimentos e podemos ter a vanguarda nesse setor”, afirma.

Viabilidade e risco

De acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, o potencial do mercado de alimentos cultivados em laboratório é enorme. Um estudo recente da consultoria McKinsey, por exemplo, aponta que o mercado de “carne celular” poderá atingir US$ 25 bilhões até o final desta década, excluindo outros produtos.

A aposta na gordura, em vez de proteína, é um ponto que fortalece a estratégia da Cellva, acredita o professor Fernando Domingues, da ESPM. “Para dar a experiência de carne como a gente conhece, é preciso de três coisas: proteína, colágeno e gordura. Muitas empresas estão explorando proteínas e a produção de colágeno, que dá a textura da carne”, explica o especialista. “Com a gordura, a Cellva pode ser uma grande fornecedora para complementar a cadeia e permitir um produto completo feito no laboratório.”

Sócio do fundo de investimentos Outcast Capital, especializado em startups de alimentação, José Rodolpho Bernardoni concorda com o professor a respeito do potencial da Cellva, mas faz a ressalva sobre a sustentabilidade econômica da empresa. “Das principais teses de investimento em alimentação, biotecnologia é a mais arriscada delas, porque envolve um tempo de desenvolvimento diferente do que o mercado está acostumado”, afirma.

Para Bernardoni, a opção da Cellva em ser uma empresa B2B, fornecendo seu produto para outras indústrias, torna a companhia mais competitiva, mas o desafio é grande, especialmente no que diz respeito no acesso a capital. “No Brasil e na América Latina, meu palpite é que não há um ecossistema maduro para esse tipo de business, o que leva a Cellva a ter de captar recursos lá fora, o que torna essa tarefa mais difícil”, diz o investidor.

Outro desafio para o futuro da empresa é saber se, de fato, a gordura criada em laboratório cairá no gosto do consumidor de massa, diferentemente do que aconteceu com os produtos plant-based. Para isso, é preciso ter não só características culinárias interessantes, mas também preço competitivo – é um dos problemas que afetou marcas como Impossible Foods e Beyond Meat, nos EUA.

É algo que também diz o consultor Sérgio Molinari, da Food Consulting, com mais de duas décadas de experiência no mercado. Para ele, a produção de comida “em laboratório” pode ser uma saída importante para assegurar a segurança alimentar do futuro, especialmente ao se considerar que não há proteínas disponíveis para todos os 7 bilhões de habitantes do planeta.

No entanto, para que esses alimentos se tornem uma alternativa viável, o preço é uma grande preocupação. “Pensando em mercado como um todo, o preço determina o acesso das pessoas à comida. À medida que se depende mais de sensibilidade ou percepção de benefícios como saudabilidade e sustentabilidade, esses produtos podem ser vistos como menos benéficos pelo consumidor”, diz Molinari. Na visão dele, ainda é incerto o potencial desse setor de ir além de um nicho específico – e só o futuro dirá quem ficou com um gosto agradável na boca.

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