O Facebook está prestes a enfrentar a maior batalha judicial de sua história: nesta quarta-feira, 9, a empresa se tornou alvo de dois processos diferentes, movidos respectivamente pela Comissão Federal do Comércio dos EUA (FTC, na sigla em inglês) e por uma coalizão de 46 advogados-gerais de Estados americanos. A acusação é de que a empresa violou as leis de antitruste do país para se tornar um monopólio das redes sociais ao comprar rivais como o WhatsApp e o Instagram – e a consequência pode ser até que as empresas tenham de ser separadas.
Após uma investigação que durou mais de um ano e meio, as autoridades entenderam que a compra do Instagram, em 2012, por US$ 1 bilhão, e a do WhatsApp, em 2014, por US$ 19 bilhões, eliminaram competição no mercado de redes sociais. Além disso, as duas aquisições ajudaram o Facebook a se tornar uma empresa com valor de mercado de cerca de US$ 800 bilhões. Em um comunicado, a coalizão de advogados gerais pede à Justiça a interrupção das atividades ilegais do Facebook e a avaliação sobre ser necessário à empresa desinvestir ou reestruturar sua atual governança. O grupo pediu ainda que o Facebook não possa adquirir nenhuma empresa acima de US$ 10 milhões sem avisar as autoridades.
"Por mais de uma década, o Facebook usou sua dominância e poder para esmagar rivais e eliminar competição, às custas de seus usuários diários", disse a advogada-geral de Nova York, Letitia James, que liderou a investigação em paralelo com a agência federal. "Nossa ambição é afastar as condutas anticompetitivas do Facebook e permitir que a competição e a inovação voltem a acontecer", complementou Ian Conner, diretor do burô de competição da FTC, em um comunicado em separado.
Em uma nota, o Facebook chamou o processo de "revisionismo histórico" e disse que sua ideia é "punir empresas bem-sucedidas". "O fato mais importante neste caso, que a Comissão não menciona no seu processo de 53 páginas, é que ela própria autorizou essas aquisições anos atrás. O governo agora quer rever sua própria decisão, enviando uma mensagem assustadora para as empresas norte-americanas de que nenhuma decisão é definitiva", declarou a vice-presidente global jurídica da empresa, Jennifer Newstead. Ela afirmou ainda que a empresa vai se "defender vigorosamente".
O jornal americano The New York Times teve ainda acesso a um comunicado interno distribuído por Zuckerberg aos funcionários. Na carta, ele defende a empresa, afirma que o processo pode levar "anos para ser concluído integralmente" e disse que nenhum funcionário deve "comentar o caso ou assuntos relacionados, exceto com o nosso time jurídico".
Ações são históricas, mas efetividade ainda é imprevisível, dizem analistas
Após o anúncio dos processos, as ações do Facebook caíram cerca de 2% na Nasdaq – para analistas, o impacto não foi maior porque o caso já era esperado há semanas pelo mercado. Além disso, há quem acredite que será difícil reverter aquisições após meia década – além do argumento de revisionismo histórico, há ainda o apelo da insegurança jurídica, como ressalta o professor Armando Luiz Rovai, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mas ele mesmo faz a ressalva: “se for evidenciado que certos atos levaram à concentração de mercado, poder público e judiciário podem ser instados.”
Na visão de Carlos Affonso Souza, professor da UERJ e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio), este caso é “filho de seu tempo”. “A narrativa comum do Vale do Silício era a ideia de um adolescente que virava uma gigante, mas agora se questiona o impacto que essas gigantes têm nas nossas vidas”.
Para o especialista, é cedo para dizer qual será o futuro destas ações, mas sua importância já é histórica, especialmente pelo fato de já colocarem na mira um desmembramento do Facebook, além de passar recados para o mercado. “Quem se envolve em práticas agressivas de negociação contra concorrentes pode ter problemas no futuro”, alerta.
Além das compras, acusações incluem posturas anticompetitivas
Parte das acusações reveladas nesta tarde de quarta-feira, 9, já eram conhecidas desde julho, quando o Congresso americano revelou documentos que mostram que Mark Zuckerberg, presidente executivo do Facebook, deliberadamente decidiu comprar o Instagram para evitar competição – algo que é proibido nos EUA segundo as leis de concorrência vigentes. Durante uma troca de e-mails com o então diretor financeiro da empresa, David Ebersman, em 2012, Zuckerberg chegou a dizer que “se eles (o Instagram) crescerem em larga escala, pode ser muito prejudicial para o Facebook”.
No Congresso, Zuckerberg afirmou que o Facebook sempre viu o Instagram como competidor e como complemento aos seus serviços. “Naquela época, não era óbvio que o Instagram teria o tamanho que tem hoje. Havia grandes rivais, não tinha garantia de que o Instagram seria bem sucedido. A aquisição deu certo por conta do talento dos fundadores, mas também porque investimos nessa empresa", afirmou, tentando se defender de uma potencial acusação.
O processo dos advogados gerais cita ainda atitudes anticompetitivas do Facebook com empresas como Google, Myspace, Onavo (espécie de app espião que ajudou a empresa a comprar o WhatsApp) e Circle. Curiosamente, o texto não cita nomeadamente o Snapchat, caso mais conhecido da agressividade de Zuckerberg – após negar uma oferta de compra pelo Facebook, as funções de mensagens efêmeras do app de Evan Spiegel foram plagiadas pela gigante e se tornara um dos pilares do sucesso do Instagram, os Stories.
Já uma outra parte das acusações feitas pela FTC e pela coalizão de advogados-gerais se baseia em condutas anticompetitivas tomadas pela empresa de Zuckerberg. No comunicado em que divulgou o processo, a FTC acusou o Facebook de impor barreiras ou restrições a desenvolvedores de software que quisessem ter acesso à sua base de aplicações (API, na sigla em inglês), o que permitiria que novos apps pudessem se aproveitar da base de dados da rede social. Um exemplo aconteceu em 2013, quando o Facebook fez o app de vídeos curtos Vine desativar uma função que permitia a seus usuários encontrar contatos com base na lista de amigos no Facebook – a mudança ocorreu porque a plataforma de vídeos havia sido comprada pelo Twitter, visto como rival da rede social de Zuckerberg.
Já a coalizão de advogados-gerais ressalta que o Facebook é usado sem cobrar uma "tarifa monetária, mas providencia serviços em troca de tempo, atenção e dados pessoais dos usuários". O comunicado fala ainda que a empresa utilizou uma tática de "comprar ou enterrar" seus competidores: "se uma companhia em ascensão não aceitasse ser adquirida pelo Facebook, a rede tentaria retirar todo o oxigênio disponível para essas empresas", diz o texto.
Momento é de tensão entre Washington e o Vale do Silício
Os processos fazem parte de um crescente movimento bipartidário em Washington para regular as gigantes de tecnologia. Nos últimos meses, reguladores e autoridades colocaram empresas como Facebook, Google, Amazon e Apple sob sua mira – em julho, em um depoimento histórico, os líderes das quatro companhias passaram mais de cinco horas sendo sabatinados pelo Congresso dos EUA.
Em outubro, veio à tona o primeiro processo resultante das investigações, em que o Google é acusado pelo Departamento de Justiça (DoJ, na sigla em inglês) de praticar monopólio com seu serviço de buscas. O caso foi considerado relevante, mas ainda aquém de ser efetivo para mudar o mercado. Este não parece ser o caso agora – afinal, WhatsApp e Instagram são parte muito relevante da estratégia atual e futura do Facebook.
Além disso, se as intenções da FTC e dos advogados-gerais avançarem, o Facebook pode se tornar um paradigma para as empresas de tecnologia desta época, tal como foi a Standard Oil de Rockfeller e a AT&T nos anos 1960. Presidente executivo do Facebook, Mark Zuckerberg já chegou a admitir que uma cisão das diferentes companhias de sua empresa é uma ameaça "existencial".
O caso também pode abrir precedentes para que inúmeras operações de fusão feitas pelas gigantes de tecnologia nos últimos anos sejam revertidas – é importante lembrar que as duas aquisições, de Instagram e Facebook, foram aprovadas pela FTC na época, ainda durante a gestão de Barack Obama.
Há a expectativa de que um segundo caso contra o Google seja apresentado até o final do ano. Os casos também encontram ecos no exterior: na União Europeia, a gigante de buscas já foi alvo de três processos antitruste e as empresas de tecnologia estão constantemente sob a mira de reguladores e legisladores.
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