As pesquisas do Google são um pilar da internet há mais de duas décadas. Entre curiosidades, informações e serviços, a ferramenta se consolidou como o lugar mais importante da rede para tirar dúvidas. No entanto, o modelo, que sustentou boa parte da internet ao longo desse período, está prestes a passar pela mudança mais profunda de sua história - o que, em último caso, pode alterar a internet para sempre.
No dia 14, a gigante das buscas lançou uma ferramenta chamada AI Overview, que pode resumir conteúdos e oferecer tópicos de respostas a partir de uma busca do usuário no site. Com ele, não é necessário clicar em nenhum link ou ser redirecionado para nenhum outro portal para obter as informações desejadas. Na prática, um resumo com as principais informações sobre o que o usuário deseja saber aparece na mesma tela de busca, acima dos links.
É um modelo profundamente diferente do atual, que prescinde da existência de outros sites e produtores de conteúdo - afinal, o Google foi criado em 1998 para organizar e ranquear páginas na web. A partir da mudança, esse não será mais o modelo da companhia, que vai reutilizar as informações já disponíveis na rede. Isso pode ser um divisor de águas na forma como fazemos pesquisas na web e acessamos sites.
Como funciona o AI Overview
Lançado no último Google I/O, principal evento de desenvolvedores da empresa, o AI Overview é um recurso de IA generativa nas pesquisas do site que vai permitir com que os resultados sejam acompanhados por resumos e imagens explicativas.
O AI Overview também vai poder ser personalizado para cada usuário e vai oferecer suporte para perguntas mais complexas, ou seja, com maiores detalhes sobre o que se deseja pesquisar. O usuário poderá incluir informações sobre vários aspectos em uma mesma pesquisa. A empresa espera que o serviço atinja centenas de milhões de usuários até o fim do mês e um bilhão de pessoas até o final do ano. Ele já está disponível para todos os usuários dos EUA - e, segundo o Estadão apurou, deve chegar em breve no Brasil.
“Com o Overview, as pessoas pesquisam mais, fazem novos tipos de perguntas, fazem mais perguntas e essas são oportunidades adicionais para as pessoas”, afirmou Liz Reid à reportagem, durante uma entrevista coletiva na sede do Google.
De fato, o impacto para os usuários é grande. Eduardo de Rezende Francisco, do departamento de Tecnologia e Data Science (TDS) da FGV EAESP, afirma que o novo recurso é algo que deve ser bastante útil. Ele acredita que o sistema conversa com o que se tem exigido das ferramentas de IA até aqui: personalização, informações apuradas e com perguntas mais simplificadas, sem que o usuário se preocupe em filtrar palavras chaves específicas ou táticas para filtrar os resultados entre os milhares de links que normalmente aparecem nas pesquisas.
“A gente vê uma revolução nesse uso bastante amplo dessa inteligência artificial. Isso é sofisticado e traz uma impressão geral de que é útil no dia a dia, desde facilitar resumo de textos até a busca por coisas em que você não precisa estruturar (os termos de busca) muito bem. Você faz uma pergunta meio genérica e ele te ajuda a desenvolver isso”, apontou Francisco.
Era um movimento que o Google precisava fazer. Segundo Fábio de Miranda, coordenador do curso de Ciência da Computação do Insper, a mudança representa o desejo de atrair usuários novamente para a busca da empresa. Nos últimos meses, usuários reclamaram que as buscas tiveram um aumento de resultados patrocinados e conteúdos pouco específicos. Ainda, para a geração mais nova, o TikTok havia se tornado um escape mais simples e eficaz para fazer buscas na internet.
Além disso, a gigante ficou pressionada desde que a OpenAI lançou o ChatGPT, em novembro de 2022. O chatbot passou a ser usado também como um local de busca de informações, o que acendeu o sinal de alerta na companhia. Com a fluidez da ferramenta de Sam Altman e o surgimento de novas rivais como a Perplexity AI, o Google precisava proteger sua mais tradicional ferramenta e a opção foi jogar no mesmo terreno das novatas: IA generativa.
“Com o recurso, o Google consegue filtrar os resultados relevantes para a IA e ela se encarrega de elaborar a resposta que será entregue à pessoa. Tem um potencial até de incentivar as pessoas a voltarem a usar a busca, em uma interface mais conversacional e mais acessível”, afirmou Miranda, em entrevista ao Estadão.
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Antes do AI Overview, o Google passou todo o ano de 2023 experimentando com outro recurso de IA generativa na busca, o Search Generative Experience (SGE), disponível apenas para alguns usuários via Google Labs, que funcionava como uma espécie de chatbot nas buscas, trazendo respostas que dispensam o clique nos sites.
O que muda para o ecossistema da internet?
A facilidade para o usuário, porém, implica em mudanças profundas para a internet - principalmente em um ecossistema que depende do número de acessos e visualizações para sobreviver.
Isso porque, a partir do momento em que o buscador fornece informações completas sobre a sua pesquisa, a probabilidade de o usuário se aprofundar no tema - ou seja, buscar outros sites e links - diminui, segundo Dora Kaufman, professora especializada em IA da PUC-SP.
“As pessoas não buscam se aprofundar quando elas têm uma resposta que consideram satisfatória. Quanto mais fácil vêm as respostas, mais as pessoas vão gostar. E não é por outra razão que o mundo está fazendo isso”, explica Dora ao Estadão.
No entanto, boa parte de sites e blogs está apoiada em um modelo de negócio no qual o clique é fundamental para gerar renda por meio de anúncios. O modelo de remuneração atual está relacionado ao tráfego que o site recebe, que permite que os anúncios exibidos na página sejam visualizados - cada visualização gera um valor que, no final, representa parte da receita desses sites. Sem esses acessos, a quantidade de visitas cai, assim como a soma recebida, o que pode tornar a existência de vários blogs e portais insustentáveis.
A revista AdWeek estimou em fevereiro que o SGE poderia gerar perda de US$ 2 bilhões em receita para a indústria de mídia. Segundo os especialistas ouvidos pela publicação, sites poderiam ter queda na receita gerada pelo Google entre 20% e 60%. Não há números estimados para o AI Overview, mas são grandes as preocupações de que a “nova internet” seja mais pobre e centralizada, com menor oferta de sites, Google concentrando ainda mais renda e veículos de notícias sem alternativas ao paywall. Tudo isso, claro, pode se tornar um problema de longo prazo para o próprio Google.
“Em um mundo onde temos um excesso de conteúdo, talvez a prioridade se torne de quem está produzindo conteúdo originalmente. Muita gente que vive de traduzir ou remixar (conteúdos) pode se tornar irrelevante em um algoritmo futuro. Então, os sistemas de IA podem matar sites e veículos. Isso, porém, não significa matar a internet, significa matar quem não é um produtor primário de conteúdo”, explica Edney Souza, professor da ESPM-SP.
O discurso ensaiado pelo Google é o de que os usuários farão justamente o contrário e vão clicar em mais links e sites. Para Liz Reid, chefe da divisão de pesquisas da empresa, a customização do Overview desperta a curiosidade para que o usuário possa continuar a busca.
“Há muitas oportunidades de se aprofundar na web com a IA. Anteriormente, as pessoas vinham com uma consulta muito genérica. Elas não se sentiam capazes de fazer uma consulta pessoal com todos os diferentes aspectos que desejassem e, portanto, os sites que falam sobre coisas genéricas poderiam estar no topo. Agora as pessoas começam a fazer perguntas mais ricas. E acho que isso é muito animador de se ver”, afirma a executiva.
Futuro
Atualmente, o mecanismo de pesquisa representa a maior fatia do faturamento da empresa, com cerca de 57% da receita total — no último trimestre, a área faturou US$ 46,1 bilhões. A representação no mercado também é bastante grande: cerca de 90% do ecossistema de buscas é dominado pelo Google e já são mais de 8 bilhões de pesquisas diárias feitas na plataforma, de acordo com um levantamento divulgado pela empresa de pesquisas Hubspot.
Com os números gigantes, o Google enfrenta duas situações com o mecanismo de busca: ao mesmo tempo em que domina o mercado, precisa olhar para o seu produto principal frente às demandas de usuários. O custo disso pode ser uma transformação radical da rede.
Demi Getschko, colunista do Estadão e presidente do NIC.br, diz: “Certamente, a IA afeta aplicações na internet, mas a própria IA usa a internet para chegar até nós. O que vemos sobre a rede pode mudar muito, mas ainda dependemos do substrato para a comunicação. Aplicações sobre a internet podem sofrer alterações profundas com IA, ou mesmo desaparecer. A internet, porém, como uma espécie de “eletricidade”, deve manter-se como o “substrato” mais importante pelos próximos anos”.
Resta saber o que vai sobrar para os usuários na nova internet.
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