Tecnologia por trás do ChatGPT, a inteligência artificial (IA) generativa sacudiu o mercado de tecnologia, que vê nessa inovação o próximo grande salto para o setor. Com potencial para automatizar tarefas e trazer mais eficiência na vida de consumidores e empresas, essa solução pode ser revolucionária — não à toa, toda e qualquer startup no mundo procura uma maneira de entrar no que logo foi chamado de “corrida da inteligência artificial”, antes que seja tarde demais.
A disputa é dominada principalmente por companhias dos Estados Unidos. O país americano lidera os investimentos privados na área de IA, com US$ 47,4 bilhões aportados em 2022, ante os US$ 13,4 bilhões do segundo colocado, a China, de acordo com relatório anual da Universidade Stanford publicado neste ano. Além disso, os principais nomes da área de inteligência artificial vêm dos EUA, como os velhos conhecidos Google, Microsoft, Meta, Amazon e Apple, e as novatas OpenAI, Anthropic, Character.AI, Midjourney e Stability.
Paralelamente, outros países e regiões buscam maneiras de entrar nessa disputa, como a União Europeia, que discute regulamentação e políticas de incentivo a essa tecnologia. Por lá, a França apresenta na startup Mistral, que levantou US$ 113,4 milhões em junho. Já a Alemanha aposta na Nyonic e Aleph Alpha, ambas em estágio inicial e em busca de investidores. Nenhuma delas, porém, está próximo de rivalizar com as americanas.
A situação é ainda mais complicada no Brasil, principal pólo de tecnologia da América Latina. Por aqui, ainda não há nenhum nome como grande expoente no setor de inteligência artificial generativa, com iniciativas ainda pequenas tentando ganhar escala. Prova disso é que o País sequer aparece no mapeamento anual da Universidade Stanford, considerado referência mundial no tema.
Precisa-se de capital
Um primeiro sintoma está na falta de capital para bancar esses projetos, considerados mais ousados que o normal. Por característica da própria tecnologia (considerada uma “deep tech”, com uso intensivo de tecnologia), a IA generativa exige muita pesquisa, treinamento e teste até ir ao mercado. Só aí a solução deve ganhar escala para então gerar caixa para a companhia. Isso tudo, é claro, leva tempo e dinheiro.
“No Brasil, os fundos de capital de risco vão colocar o dinheiro onde há o menor risco possível, como em fintech ou em coisas que já funcionam. E não em deep techs”, critica o empreendedor Rodrigo Scotti, presidente do conselho da Associação Brasileira de Inteligência Artificial (Abria), cofundada por ele em 2017 e hoje com 30 membros, sob expectativa é chegar a 80 até o fim do ano. “Os fundos brasileiros gostam de pegar um modelo lá fora e replicar aqui no País. Isso não é inovar.”
O professor Anderson Soares, coordenador do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG), concorda que o mercado de venture capital do Brasil não se dedica a deep techs, como a área de IA generativa ou computação quântica. “Como o capital de risco no Brasil é escasso, só é possível conseguir investimento para produtos mais finalísticos. A startup precisa nascer com um produto-fim. Precisa ser algo próximo da ponta de consumo”, explica.
Os fundos brasileiros gostam de pegar um modelo lá fora e replicar aqui no País. Isso não é inovar
Rodrigo Scotti, presidente do conselho da Associação Brasileira de Inteligência Artificial (ABRIA)
Isso, porém, pode estar para mudar. Com a chegada do ChatGPT e a corrida pela inteligência artificial, investidores de startups estão mais atentos a oportunidades. “Foi bem notório esse efeito pró-IA causado pelo ChatGPT. Isso já está impulsionando nossas startups, ainda que para uma lógica de produtos finalísticos”, diz o professor.
O empresário Scotti, da Abria, espera surfar nessa onda. Também presidente-executivo da startup Nama, que ele fundou em 2014, está à procura de investidores para impulsionar o negócio da companhia. A firma utiliza inteligência artificial generativa para criar robôs de bate-papo para empresas, utilizando um modelo amplo de linguagem (LLM, na sigla em inglês) próprio, treinado com dados brasileiros. Entre os clientes da empresa estão a Magazine Luiza, que utiliza o chatbot para conversar com clientes.
“Eu estou há 10 anos tentando fazer as pessoas entenderem o que é um LLM. Finalmente, com o ChatGPT, entenderam”, diz Scotti.
Precisa-se de talentos
Encontrar talentos na área de tecnologia é um desafio comum a todas as empresas, mas o cenário torna-se ainda mais complexo quando se trata de profissionais especializados em inteligência artificial, como cientistas de dados, ocupação relativamente nova nas universidades brasileiras. Para 57% dos empreendedores de startups do País, a escassez de gente é o maior obstáculo no desenvolvimento da área de IA no Brasil, segundo estudo do Google for Startups publicado em outubro de 2022.
Além disso, as startups brasileiras enfrentam outro problema: a competição com grandes companhias nacionais ou com firmas estrangeiras, que pagam em dólar ou euro, por exemplo. Para o relatório do Google, isso pode levar o Brasil para uma “periferia tecnológica iminente”: “Com um mercado escasso, competitivo e no seu auge, a baixa oferta desses profissionais leva a propostas desleais, que quase nenhuma startup pequena consegue equiparar por uma questão financeira”, diz o texto.
O empresário Christian Rocha, cofundador e presidente executivo da Munai (startup brasileira que aplica IA generativa na área da saúde), relata passar por esse problema e considera a própria companhia como uma “empresa-escola” para os profissionais de IA. “Conseguimos contratar pessoas com alto potencial ao final da graduação e, conforme essa pessoa vai ganhando experiência, ela consegue emprego fora do País”, diz o executivo. “Nós não conseguimos mantê-la porque não temos caixa.”
Esse não é o problema da startup Moises, startup musical de IA generativa fundada pelos brasileiros Geraldo Ramos, Eddie Hsu e Jardson Almeida nos Estados Unidos em 2019. Com um pé lá e outro aqui, a companhia possui o “melhor dos dois mundos”: tem acesso ao capital do Vale do Silício (levantou US$ 8,65 milhões no ano passado) e faz contratações de brasileiros, em especial do Nordeste (região de origem dos fundadores).
“Essa combinação nos traz muitos benefícios”, explica Ramos, citando que a dolarização dos salários convence mais rapidamente os brasileiros a trabalharem com a startup, além dos soft skills criativos dos brasileiros no negócio. “Ter talento do Brasil é um diferencial absurdo.”
Precisa-se de cultura de dados
Especialistas apontam que há outro problema comum às startups do Brasil: falta de uma “cultura de dados”. Conhecida no mundo da tecnologia, a expressão diz respeito a um conjunto de boas práticas que promovam o armazenamento de informações digitalizadas para que sejam manejadas posteriormente. Em outras palavras, é a etapa anterior à construção de qualquer inteligência artificial, que exige grandes volumes dessas informações para funcionar e ser, no final das contas, “esperta”.
“Não é possível desenvover uma inteligência artificial sem um LLM e, portanto, sem dados. Sem uma curadoria adequada dessas informações, não se consegue produzir isso”, explica o engenheiro André Filipe Batista, pesquisador na Universidade de São Paulo (USP) e professor do Insper. “Temos no mercado pessoas que não tiveram formação em curadoria de dados. Outros países também não tiveram isso, mas acordaram antes de nós com práticas de governo aberto, ciência aberta, inovação aberta”.
A cientista de dados Bianca Ximenes, especialista em aprendizado de máquina e com passagem por empresas como a startup brasileira Gupy, afirma que é comum esbarrar em executivos do alto escalão que não têm conhecimento sobre como colocar de pé uma IA. “Alguns não têm o conhecimento organizacional necessário para construir essa cultura. E é preciso ter pessoas que ajudem nesse sentido”, defende.
Para ela, além de difultar o trabalho de manejo dos dados, essa ausência de cultura de dados pode acabar desanimando os cientistas da área. “É desestimulante estar em um processo seletivo e ver que as lideranças não sabem o que é ciência de dados nem aprendizado de máquina nem se possuem a estrutura de dados necessária”, afirma ela, que está de mudança para Paris para trabalhar em uma startup francesa. “Nem sempre é uma questão de salário.”
Sobra otimismo
Nem tudo está perdido. Apesar dos entraves, o Brasil é considerado um terreno fértil para o mercado de tecnologia, graças ao tamanho do mercado consumidor, relevância na América Latina e crescente avanço no ecossistema de startups do País, que atraem investidores de todo o mundo.
“Dá tempo de sermos relevantes no mercado de IAs generativas”, diz Batista, professor do Insper. Para ele, uma saída é realizar parcerias com grandes empresas do ramo, como a OpenAI e Google, que disponibilizam APIs dos seus sistemas de inteligência para que companhias criem produtos inovadores. Esse caminho pouparia tempo e custos para muitas startups por aqui. “Podemos usar o que já existe das Big Techs para alavancar as grandes oportunidades”, comenta. “Não faz sentido tentar fazer uma espinha dorsal paralela a essas companhias”.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.