Quando se fala em inteligência artificial (IA) generativa, as pessoas pensam no chatbot ChatGPT, da startup americana Open AI, ou em grandes empresas de tecnologia, como o Google. Mas países fora dos Estados Unidos também querem entrar na luta pelo domínio dessa tecnologia, com modelos amplos de linguagem (LLM, na sigla em inglês) próprios. Uma olhada na Europa, ou mais precisamente nos dois maiores países do continente (França e Alemanha), mostra isso.
Na Alemanha, já existem duas empresas que querem enfrentar a Open AI e similares. A startup Nyonic, com sede em Berlim, é uma novata. A empresa foi fundada há apenas algumas semanas e está desenvolvendo um sistema de IA generativa para ser integrado a diferentes indústrias, com expectativa de a primeira versão, de testes, chegar ao mercado em 2024. A equipe de fundadores é composta por cinco especialistas na área: Feiyu Xu (ex-SAP), Johannes Otterbach (ex-OpenAI), o linguista computacional Hans Uskoreit, Vanessa Cann (ex-presidente da associação alemã de IA) e Han Dong, envolvido com o ecossistema de startups da Alemanha.
Esse tipo de negócio exige grandes somas de dinheiro. Segundo rumores do mercado, o treinamento da OpenAI para o modelo GPT4, que “abastece” o ChatGPT, custou cerca de US$ 60 milhões, além de cerca de US$ 1 milhão para as operações diárias. Mas a Nyonic quer aproveitar a jornada da rival americana para poupar capital: “Podemos evitar erros que a OpenAI já cometeu e, assim, economizar dinheiro”, diz a presidente executiva da Nyonic, Vanessa Cann, ao Estadão.
Para colocar a operação de pé, a startup alemã já está em contato com o mercado de venture capital para levantar uma rodada de investimento. Até o momento, porém, o aumento de capital ainda não foi concluído, mas já há um investidor principal para o aporte, diz Vanessa.
Podemos evitar erros que a OpenAI já cometeu e, assim, economizar dinheiro
Vanessa Cann, CEO da Nyonic
A segunda grande startup alemã de IA já está mais avançada, tanto em termos de captação de recursos quanto de produto. A Aleph Alpha, com sede em Heidelberg, foi fundada em 2019 e arrecadou um total de 128,3 milhões de euros até o momento. Recentemente, ela conseguiu atrair duas grandes empresas industriais como investidores estratégicos. A Intel liderou a atual rodada de investimento com um total de 25 milhões de euros, enquanto a empresa de software alemã contribuiu com 10 milhões de euros.
Isso eleva a avaliação total da Aleph Alva para 450 milhões de euros - uma das avaliações mais altas de todos os tempos para empresas de IA na Alemanha. Apenas a startup de tradução DeepL, com sede em Colônia, que já é considerada um unicórnio, tem uma avaliação mais alta no país europeu.
A Aleph Alpha também já tem seus primeiros aplicativos: no início deste ano, a startup apresentou um assistente virtual de IA para produção industrial em conjunto com o provedor de serviços de TI Hewlett Packard Enterprise (HPE), que deve agir como um técnico de serviço altamente especializado. Ao contrário de outros robôs, esse assistente também deve funcionar com linguagem natural e ser capaz de se comunicar com a equipe de serviço por meio de imagens.
França entra no jogo
Na França, o próprio presidente Emmanuel Macron assumiu a causa da inteligência artificial. Na conferência tecnológica de Paris Viva Tech, em junho deste ano, o francês anunciou a intenção de investir 500 milhões de euros para desenvolver “campeões de IA” franceses, em sinal importante para todos os investidores e fundadores da França.
Além disos, recentemente, uma empresa de IA emblemática surgiu no país. Há algumas semanas, a Mistral AI entrou no mercado e fechou uma rodada de investimento bastante surpreendente, com US$ 113 milhões e valuation de US$ 260 milhões — muito dinheiro para uma empresa que tem apenas um mês de existência neste momento. Até mesmo o site da companhia ainda está em construção, com apenas um endereço de contato e algumas vagas de emprego.
De acordo com informações apuradas pelo Estadão, o fato de os investidores estarem dispostos a desembolsar tanto dinheiro se deve, em grande parte, à equipe fundadora: a Mistral foi criada pelos três amigos de escola e especialistas em IA Guillaume Lample, Arthur Mensch e Timothée Lacroix. Mensch trabalhou anteriormente na Deepmind, subsidiária da Alphabet (dona do Google), e Lample e Lacroix trabalharam para a Meta no modelo de linguagem de IA LLaMa, de código aberto (o que significa que outros programadores e cientistas podem examinar o código, fazer melhorias e criar seus próprios aplicativos com base no modelo).
“Os fundadores da Mistral provaram que podem treinar e aplicar modelos de última geração”, diz Viet Le, da empresa de capital de risco La Famiglia, sediada em Berlim. “Ficamos convencidos com a história e a visão da Mistral de criar uma empresa europeia de aprendizado de máquina forte e internacionalmente séria.”
A Mistral está trabalhando em um modelo de linguagem em larga escala (LLM) para aplicações industriais. Semelhante ao LlaMa, da Meta, a startup francesa também se baseia em uma abordagem de código aberto. Para o investidor Viet Le, essa é “a melhor maneira de atrair usuários, construir uma comunidade e criar transparência e confiança para uma tecnologia”.
Além disso, apostar em um serviço de código aberto pode ter outra vantagem: a Mistral poderia contornar partes das rígidas regulamentações de IA da União Europeia (UE). A União Europeia está se preparando para concluir sua “Lei de IA” no final do ano, peça de regulamentação que vai ditar como os sistemas de automação vão operar no bloco.
Atualmente, projetos de código aberto poderiam ser excluídos da peça em discussão na UE. Mas ainda não está claro se e como isso será de fato regulamentado. De acordo com especialistas, também é bem possível que essa exceção não se aplique a serviços usados comercialmente, independentemente de serem regulamentados com base em código aberto ou não.
Foco em empresas
Tanto a francesa Mistral quanto as alemãs Nyonic e a Aleph Alpha querem desenvolver aplicativos para clientes da indústria, ao contrário do rival ChatGPT, usado principalmente por consumidores finais. No mercado, essa estratégia é chamada de business to business, ou B2B — empresa para empresa.
Segundo Vanessa Cann, da Nyonic, esse foco na indústria pode ser uma vantagem sobre as rivais americanas e algo que é um diferencial para atrair investidores interessados em bancar esses projetos.
Aplicativos proprietários de IA para empresas europeias fazem sentido, pois, de acordo com a legislação da UE, essas companhias podem ter dificuldades para usar software de IA de outros países, como o ChatGPT. Na Itália, por exemplo, o uso do ChatGPT foi banido por algumas semanas, e a Alemanha também estava debatendo uma proibição.
Ainda não se sabe qual dos três participantes europeus de IA poderá competir com o OpenAI. Mas não se trata realmente de qual startup de IA generativa vencerá na Europa, diz o investidor Viet Le. Trata-se de “não ser completamente deixado para trás e ficar dependente da China e dos EUA”, diz.
*Repórter é bolsista do Internationale-Journalisten Programme (IJP), programa de intercâmbio para jornalistas;
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