Após seis meses de negociação, Elon Musk concluiu o processo de compra do Twitter na noite de quinta, 27, um dia antes da data limite para se livrar de uma longa batalha judicial contra a companhia, que pressionava pela conclusão do negócio ao valor de US$ 44 bilhões. Agora, com a rede do passarinho definitivamente engaiolada, o bilionário tem a missão de conduzir a plataforma para outros tempos — ou pelo menos para um rumo diferente dos últimos anos. Mesmo sem um plano estruturado, Musk já deu pistas de quais mudanças importantes podem estar no horizonte da rede social.
O primeiro ato de Musk como proprietário do Twitter foi demitir os principais executivos do alto escalão da companhia: o então presidente, Parag Agrawal; o chefe financeiro, Ned Segal; e Vijaya Gadde, chefe do departamento jurídico, políticas e confiabilidade. Sean Edgett, conselheiro geral do Twitter, e a executiva Sarah Personette também entraram na leva de demissões de alto escalão da rede social, segundo apuração do New York Times e Insider. De acordo com os jornais, alguns dos executivos foram escoltados para fora da sede do Twitter momentos depois da demissão.
Entenda o caso
Os próximos passos na plataforma, agora, vão ter relação direta com aquilo que o usuário encontra diariamente no site, acredita Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-RIO).
“São, pelo menos, três assuntos na mesa: a questão sobre liberdade de expressão e moderação de conteúdo; o problema das contas automatizadas e a ideia de abertura de algoritmo, transformar rede social numa infraestrutura que não seja proprietária”, explica ele.
Veja a seguir que deve acontecer com o Twitter após o negócio.
Moderação de conteúdo versus ‘liberdade’
“A razão pela qual adquiri o Twitter é porque é importante para o futuro da civilização ter uma ‘praça pública digital’, onde uma ampla gama de crenças possa ser debatida de maneira saudável, sem recorrer à violência”, afirmou o Musk, em carta para anunciantes publicada no Twitter na última quinta-feira, 27.
Desde que sinalizou a intenção de comprar a plataforma, em abril deste ano, o bilionário bate na tecla de que é necessário que a moderação das redes sociais precisa ser “afrouxada”. O episódio do banimento de Donald Trump da plataforma, por exemplo, foi um dos que apareceram na “agenda” de Musk durante o período.
O ex-presidente americano teve sua conta cancelada depois de uma investigação interna da empresa, que apontou que os tuítes de Trump ajudaram a incitar apoiadores na invasão do Capitólio em janeiro de 2021 — uma das expectativas para os primeiros dias de comando de Musk é que a conta de Trump seja restabelecida.
“A pergunta que fica é o quanto uma visão de liberdade de expressão absolutista do Elon Musk se corporifica na rede social em que ele se torna o CEO. Essa pergunta se liga com uma questão muito íntima das empresas do Vale do Silício, em que a figura do CEO não raramente é chamada para decisões difíceis e complexas”, alerta Souza. “De certa maneira, isso faz com que o grau de personalismo na tomada de algumas decisões passe por uma questão de visão de mundo”.
Já ha alguns sinais do que pensa o bilionário. Uma das executivas demitidas, Vijaya Gadde, era responsável pela moderação de banimento de contas e esteve diretamente ligada à suspensão permanente do perfil de Donald Trump na rede social. Para Musk, que já tinha defendido a liberdade dos usuários de serem mais explícitos na plataforma. “As pessoas deveriam poder dizer coisas escandalosas dentro da lei, mas esses discursos não deveriam necessariamente ser amplificados”, disse em uma reunião em junho deste ano.
As pessoas deveriam poder dizer coisas escandalosas dentro da lei, mas esses discursos não deveriam necessariamente ser amplificados
Elon Musk, em reunião em julho deste ano
Pelo Twitter, Musk indicou nesta sexta-feira, 28, que deve formar um conselho de moderação para analisar as direções do setor e tomar decisões sobre as suspensões que já existem na rede social. “O Twitter estará formando um conselho de moderação de conteúdo com pontos de vista amplamente diversos. Nenhuma decisão importante de conteúdo ou restabelecimento de conta acontecerá antes que o conselho se reúna”, publicou o empresário.
Atualmente, o Twitter tem tentado rotular algumas publicações e links que possam trazer desinformação sobre diversos assuntos — principalmente relacionados à saúde e política.
Em retuítes de conteúdos externos, por exemplo, a plataforma recomenda que o usuário leia o artigo antes de compartilhar; nos perfis de candidatos políticos, também há etiquetas identificando o cargo e se o post pode conter desinformação. Sob o mandato de Musk, esse tipo de moderação pode ser revisto e reestruturado, caso o bilionário acredite que seja restritivo demais para o que acredita ser liberdade de expressão.
O termômetro do que pode ou deve ser aceito na rede social — ou pelo menos parte dele — poderá ser visto já no próximo domingo, 30, durante o segundo turno das eleições presidenciais no Brasil. A corrida polarizada no País é também refletida nos comentários publicados na plataforma e pode ser um primeiro caso de guerra contra desinformação, discurso de ódio e ataques democráticos sob a era Musk.
Na Europa, onde um forte movimento de regulação de redes sociais tem se formado, a ideia de moderação frouxa é rechaçada e uma lei chamada Digital Markets Act foi aprovada para estabelecer regras para empresas que controlam dados e acesso à plataforma, além de estreitar a supervisão de conteúdos considerados ofensivos.
Depois da conclusão da compra, Thierry Breton, comissário da União Europeia, respondeu um tuíte de Musk se referindo à liberdade do pássaro símbolo do Twitter. “Na Europa, o pássaro voará de acordo com nossas regras”, disse ele.
Demissões
Em maio deste ano, a empresa afirmou que estava congelando as contratações e analisando cenários para cortar gastos na companhia. O movimento tem sido comum nas gigantes de tecnologia — a Meta, holding do Facebook, e a Microsoft também já indicaram a diminuição ou o congelamento de vagas.
Em julho, 30% do time de aquisições de talentos da empresa foi demitido, frente à incerteza sobre a negociação de venda da rede social para Musk. Já pouco antes do fechamento do negócio, o jornal americano Washington Post publicou que os planos de Musk era de demitir 75% dos funcionários atuais da empresa, passando de 7,5 mil colaboradores para cerca de 2 mil.
Para o futuro, a expectativa é que os cortes façam parte dos planos de gestão de Musk — ainda que não atinja 75% dos funcionários, de acordo com o empresário. Isso porque depois de um ano de fraco desempenho financeiro e dificuldades com a monetização de usuários, existe uma pressão para que a empresa diminua gastos e aumente a eficiência da operação.
Algumas demissões no time de engenharia já começaram nesta sexta, 28
Ainda há a possibilidade de um intercâmbio de profissionais entre Twitter e Tesla. Musk teria pedido para engenheiros da fabricante de carros elétricos entrarem em contato com a área de produto da rede social, para acessar códigos da companhia e entender como era o funcionamento da plataforma.
Bots
Em maio, Musk solicitou uma investigação para averiguar os números da plataforma, afirmando que poderiam chegar a 20% do total de contas existentes. A equipe responsável pela investigação, porém, afirmou que não era possível verificar os dados fornecidos pelo Twitter, mas a empresa continuou defendendo que o cálculo feito pela empresa é apurado.
Existe, agora, um esforço da equipe de Musk para resolver um dos primeiros problemas identificados por ele. Isso porque a quantidade de contas inautênticas impacta na visualização de anúncios, importante fonte de receita para a rede social.
Em conversas privadas divulgadas pela Corte de Delaware, o bilionário chegou a especular com o irmão, Kimbal Musk, um tipo de código blockchain para os usuários, fazendo com que alguns serviços tivessem uma taxa mínima — que poderia ser até de centavos — apenas para garantir a presença de usuários reais na plataforma.
Projeto ‘X’
O bilionário quer tornar o site um “aplicativo de tudo” — um super app, como são conhecidas essas plataformas — a “X.com”. Para isso, um dos exemplos do bilionário é o chinês WeChat, que tem alta popularidade no país asiático por reunir características de redes sociais, mensageiro e app de banco em um só.
O projeto não é novo para o bilionário. Antes de sinalizar a primeira intenção de compra do Twitter, Musk já havia comentado sobre criar sua própria rede social, alegando que isso permitiria seus usuários a ser mais “livres” para publicar opiniões sobre conteúdos diversos.
“A gente sabe quão diferente é o mercado do oriente e do ocidente. Tanto na América Latina quanto nos Estados Unidos e Europa existe muito essa segmentação dos aplicativos, diferente da Ásia. Então, ele vai ter que mudar uma cultura que já está estabilizada e que as pessoas já estão acostumadas”, afirma Guilherme Zanin, da corretora Avenue.
Depois de publicar sua ideia para o ‘X’ no Twitter, um seguidor do bilionário perguntou se não seria mais fácil apenas criar uma rede social do zero. “(a compra do) Twitter provavelmente acelera (a construção da) X entre 3 e 5 anos, mas posso estar errado”, respondeu Musk.
A compra Twitter provavelmente acelera a construção da ‘X’ entre 3 e 5 anos, mas posso estar errado
Elon Musk, em resposta a seguidor no Twitter
Contrário aos anúncios exagerados na plataforma, Musk espera aumentar a receita da empresa por meio de assinaturas — semelhante ao que, hoje, é o Twitter Blue, mas com algumas diferenças no serviço. Pelo Twitter, o empresário sugeriu um plano de assinatura com valor de US$ 3 mensais, onde os usuários teriam, automaticamente, um selo de autenticação na plataforma.
A ideia, também, é fazer algum plano caso o “X” seja o substituto da plataforma atual. De acordo com o New York Times, documentos de Musk datados de maio deste ano revelam que o objetivo é alcançar 104 milhões de inscritos até 2028 na nova plataforma. Quanto ao Twitter Blue, que deve manter ferramentas das quais o empresário já se mostrou favorável, como a edição de tuítes, a expectativa é de alcançar 159 milhões de usuários no mesmo período.
De olho no TikTok, Musk também já comentou sobre uma possível implementação de vídeo no recurso Espaços, mirando serviços como o YouTube e a própria plataforma chinesa.
Código aberto
Outro plano de longa data de Musk para o Twitter é a transformação do código da rede social. A ideia foi, inclusive, debatida com o ex-presidente e fundador da plataforma Jack Dorsey, que concordou com o dono da Tesla sobre o modelo da plataforma.
Para Musk, o ideal é que o Twitter seja um site de código aberto, ou seja, que possa ser totalmente transparente em relação a forma como os tuítes são impulsionados e distribuídos. Uma eventual abertura dos códigos pode permitir que as publicações não tenham preferências na hora de serem impulsionados para a comunidade.
“Acho que deveria ser um protocolo de código aberto, financiado por uma espécie de fundo, um pouco como o Signal fez. Não pode ter um modelo de publicidade. Caso contrário, você tem uma área que governos e anunciantes tentarão influenciar e controlar”, escreveu Dorsey em uma mensagem para Musk em março deste ano. O fundador, que anunciou a saída do cargo em novembro do ano passado, ainda completa: “Uma nova plataforma é necessária. (O Twitter) não pode ser uma companhia. Foi por isso que eu saí”.
A ideia é que esses códigos pudessem estar acessíveis para todas as pessoas e que com isso, as publicações pudessem ter um alcance mais igualitário. A medida, porém, pode ser mais complexa do que o imaginado, de acordo com David Karger, professor e cientista da computação do MIT.
Em entrevista ao site Wired, Karger afirmou que não existe apenas um modelo de código responsável pela entrega dos conteúdos e que, em um momento de grande uso de dados dos usuários nas redes sociais, o aprendizado de máquina é o principal recurso utilizado para entender os usuários e recomendar as publicações na plataforma.
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