Muito antes de se tornar um dos maiores doadores da campanha de Donald Trump, Elon Musk, nascido na África do Sul, trabalhou ilegalmente nos Estados Unidos ao iniciar sua carreira empresarial depois de abandonar um programa de pós-graduação na Califórnia, de acordo com antigos parceiros de negócios, registros judiciais e documentos da empresa obtidos pelo The Washington Post.
Após a publicação da reportagem, Musk negou, em publicação no X, que havia trabalhado ilegalmente no país. “Eu estava autorizado a trabalhar nos EUA”, escreveu em um tuíte no domingo.
A postagem seguiu de um comentário do presidente americano Joe Biden sobre a polêmica. “O homem mais rico do mundo acabou sendo [um] trabalhador ilegal quando esteve aqui”, disse Biden em um evento de campanha no sábado em Pittsburgh. “Estou falando sério. Ele deveria estar na escola quando veio com um visto de estudante. Ele não estava na escola. Ele estava violando a lei. Ele está falando sobre todos esses ilegais que estão vindo para cá?”
O desconforto de Musk - e os ataques dos democratas - se explicam. Nos últimos meses, o empresário amplificou as afirmações de Trump de que as “fronteiras abertas” e os imigrantes sem documentos estão destruindo os Estados Unidos.
O que Musk não revelou publicamente é que ele não tinha o direito legal de trabalhar enquanto construía a empresa que se tornou a Zip2, que foi vendida por cerca de US$ 300 milhões em 1999. Esse foi o trampolim de Musk para a Tesla e para os outros empreendimentos que o tornaram a pessoa mais rica do mundo - e, sem dúvida, o imigrante mais bem-sucedido dos Estados Unidos.
Musk e seu irmão, Kimbal, sempre descreveram sua jornada de imigrante em termos românticos, como uma época de austeridade pessoal, ambição inabalável e disposição para desrespeitar as convenções. Musk chegou a Palo Alto em 1995 para um programa de pós-graduação na Universidade Stanford, mas nunca se matriculou em cursos, trabalhando em sua startup.
O fato de Musk ter abandonado os estudos o deixou sem uma base legal para permanecer nos Estados Unidos, de acordo com especialistas jurídicos.
Estudantes estrangeiros não podem abandonar a escola para criar uma empresa, mesmo que não estejam sendo pagos imediatamente, diz Leon Fresco, ex-litigante de imigração do Departamento de Justiça.
“Se você fizer qualquer coisa que ajude a facilitar a criação de receita, como projetar código ou tentar fazer vendas para promover a criação de receita, você terá problemas”, diz Fresco.
A situação de Musk entrou em conflito com as esperanças da Zip2 de se tornar uma empresa de capital aberto ou de participar de uma fusão, o que a submeteria ao escrutínio da Comissão de Valores Mobiliários dos EUA, de acordo com antigos associados.
Quando a empresa de capital de risco Mohr Davidow Ventures investiu US$ 3 milhões na empresa em 1996, o contrato de financiamento - cuja cópia foi obtida pela reportagem - afirmava que os irmãos Musk e um associado tinham 45 dias para obter status de trabalho legal. Caso contrário, a empresa poderia recuperar seu investimento.
“O status de imigração deles não era o que deveria ser para que pudessem estar legalmente empregados dirigindo uma empresa nos EUA”, disse Derek Proudian, membro do conselho da Zip2 na época e que mais tarde se tornou CEO. Os investidores concordaram, diz Proudian: “Não queremos que nosso fundador seja deportado”.
Outro grande acionista da época, que falou sob condição de anonimato, disse que um problema menor chamou ainda mais a atenção para as questões de imigração não resolvidas dos irmãos Musk. Musk disse aos colegas de trabalho que estava no país com um visto de estudante, de acordo com seis ex-associados e acionistas da Zip2.
“Queremos resolver isso muito antes que haja algo que possa atrapalhar” o caminho da empresa para uma oferta pública inicial, lembrou Proudian.
Ao contar publicamente a história de sua imigração, Musk nunca reconheceu ter trabalhado sem o status legal adequado. Em 2013, ele brincou dizendo que estava em uma “área cinzenta” no início de sua carreira. E em 2020, Musk disse que tinha um “visto de estudante-trabalho” depois de adiar seus estudos em Stanford.
“Eu estava legalmente lá, mas deveria estar fazendo trabalho de estudante”, disse ele em um podcast de 2020. “Eu tinha permissão para fazer um trabalho de apoio a qualquer coisa.”
Musk, seu advogado Alex Spiro e o gerente do escritório da família de Musk não responderam aos pedidos de comentários enviados por e-mail. Os registros de imigração dos EUA geralmente não são abertos ao público, o que dificulta a confirmação independente da situação legal de uma pessoa.
Em 2005, Musk reconheceu em um e-mail que não tinha autorização para estar nos Estados Unidos quando fundou a Zip2. O e-mail, enviado por Musk aos cofundadores da Tesla, Martin Eberhard e JB Straubel, foi apresentado como prova em um processo de difamação na Califórnia, há muito encerrado, e dizia que ele se inscreveu em Stanford para poder permanecer legalmente nos Estados Unidos.
“Na verdade, eu não me importava muito com o diploma, mas não tinha dinheiro para comprar um laboratório e não tinha o direito legal de permanecer no país, então essa parecia ser uma boa maneira de resolver os dois problemas”, escreveu Musk. “Então surgiu a internet, que parecia ser uma aposta muito mais segura.”
Musk nunca se matriculou em Stanford. Em um depoimento de maio de 2009, ele disse que ligou para o chefe do departamento dois dias após o início do semestre para dizer que não iria participar. No mesmo depoimento, ele disse que começou a trabalhar na Zip2 - originalmente chamada Global Link Information Network - em agosto ou setembro de 1995.
Ao não se matricular, Musk teria que deixar o país, de acordo com especialistas jurídicos e leis de imigração da época. Ele não teria permissão para trabalhar.
Embora a permanência excessiva em um visto de estudante seja algo comum e as autoridades às vezes façam vista grossa para esse fato, ela continua sendo ilegal.
A revelação de que Musk não tinha o direito legal de trabalhar nos Estados Unidos está em conflito com seu recente foco em imigrantes ilegais e na segurança da fronteira dos EUA. Se Trump vencer em 5 de novembro, Musk pode ter um papel de destaque em seu governo.
No X, Musk se tornou um ávido incentivador da retórica anti-imigração, acusando falsamente a vice-presidente Kamala Harris e outros democratas de “importar eleitores”. Imigrantes sem documentos são legalmente impedidos de votar em eleições estaduais e federais. Em fevereiro, ele escreveu que “os ilegais nos Estados Unidos podem obter seguros e carteiras de motorista”.
Musk teria que ter ambos para dirigir um veículo, o que os associados atestaram que ele fazia com frequência durante o período em que não tinha uma permissão legal de trabalho.
As regulamentações de imigração dos EUA para estudantes estrangeiros eram mais frouxas na década de 1990, antes dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que levaram a uma revisão, de acordo com especialistas em leis de imigração. Musk, que obteve a cidadania canadense por meio de sua mãe, não precisaria de um visto do Departamento de Estado para estudar em uma universidade dos EUA. Ele poderia simplesmente mostrar os documentos de matrícula em uma universidade americana aos oficiais de fronteira dos EUA e entrar nos Estados Unidos com status de estudante, segundo especialistas jurídicos.
Os estudantes estrangeiros matriculados em programas de graduação dos EUA podem ser autorizados a trabalhar em meio período e por períodos limitados para concluir seus requisitos de graduação. Adam Cohen, autor do “The Academic Immigration Handbook” (Manual de Imigração Acadêmica) e advogado especializado em vistos de trabalho, disse que Musk poderia obter autorização de trabalho como estudante, mas isso exigiria que ele estivesse envolvido em um curso completo de estudos em Stanford.
Caso contrário, “isso teria sido uma violação”, diz Cohen. Se ele não frequentasse a escola, “ele não estaria mantendo seu status”.
Ira Kurzban, especialista em leis de imigração e autor de um livro de referência jurídica amplamente utilizado por advogados e juízes, concordou.
Kurzban disse que as solicitações subsequentes dos irmãos para vistos de trabalho e para se tornarem residentes permanentes dos EUA e cidadãos naturalizados teriam perguntado se eles trabalharam nos Estados Unidos sem autorização. “Se você disser que trabalhou ilegalmente nos EUA, é muito improvável que seja aprovado”, diz Kurzban.
Kimbal Musk reconheceu várias vezes ter trabalhado nos Estados Unidos sem status legal - descrevendo sua experiência como prova de um sistema disfuncional dos EUA que bloqueia estrangeiros talentosos. Em uma entrevista em 2013, ao lado de seu irmão, ele disse que dormiam no escritório e tomavam banho no YMCA quando entraram na corrida do ouro das empresas de internet, na virada dos anos 1990.
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Em seguida, os investidores começaram a lhes oferecer grandes somas de dinheiro e a comprar carros, disse ele, apenas para descobrir que os irmãos não tinham permissão legal para trabalhar nos Estados Unidos. “Na verdade, quando nos financiaram, perceberam que éramos imigrantes ilegais”, disse Kimbal na entrevista de 2013.
“Bem”, disse Musk.
“Sim, éramos”, disse Kimbal.
“Eu diria que era uma área cinzenta”, respondeu Musk para risos da plateia.
“Éramos imigrantes ilegais”, disse Musk categoricamente.
Kimbal também disse que enganou os agentes federais dos EUA para entrar novamente nos Estados Unidos para uma reunião crucial com investidores, depois de visitar sua mãe no Canadá. Quando os agentes americanos que revistaram sua bagagem no aeroporto descobriram seus cartões de visita e o endereço na Califórnia, perceberam que ele estava viajando a trabalho - sem autorização.
Depois que os agentes negaram a entrada no país, disse ele, Kimbal pediu a um amigo que o levasse até a fronteira, dizendo aos policiais que estavam indo assistir ao show de David Letterman. Os policiais os deixaram passar, e Kimbal conseguiu chegar à reunião.
“Isso é fraude”, diz Kurzban, o especialista em imigração. “Isso o tornaria inadmissível e permanentemente impedido de entrar nos Estados Unidos”, disse ele, a menos que as penalidades fossem anuladas.
Kimbal Musk não respondeu aos pedidos de comentário.
No mês passado, Musk se disse “extremamente a favor dos imigrantes, pois eu mesmo sou um deles”. “No entanto, assim como ao contratar uma empresa, devemos confirmar que qualquer pessoa que tenha permissão para entrar no país seja talentosa, trabalhadora e ética”, completou.
Mas Musk parece ter se beneficiado da desatenção inicial dos investidores em relação ao seu próprio status, de acordo com antigos parceiros de negócios.
“Talvez ingenuamente, nunca examinamos se ele era um cidadão legal”, disse um dos principais investidores da primeira empresa de Musk, falando sob condição de anonimato. “Ele tinha um desejo ardente de ser bem-sucedido. Estávamos investindo nele. ... Sentimos que ele era realmente motivado.”
A fortuna de Musk tem suas raízes nesse período, que alimentou sua ascensão no Vale do Silício e forneceu o capital inicial para empreendimentos posteriores, incluindo o X, uma antecessora do PayPal. (Mais tarde, Musk reviveu o nome quando comprou o Twitter.) Musk foi CEO do PayPal até setembro de 2000, quando os membros da diretoria o destituíram. Dois anos depois, o eBay adquiriu o PayPal, rendendo a Musk cerca de US$ 176 milhões, que ele usou para fazer apostas posteriores na Tesla e na SpaceX.
A biografia autorizada de 2023 por Walter Isaacson afirmou que os Musks precisavam de vistos e que os investidores da Mohr Davidow Ventures os colocaram em contato com um advogado para obtê-los, mas incluiu poucos detalhes adicionais. O biógrafo Ashlee Vance também relatou que a empresa de investimentos conseguiu os vistos para os irmãos. Nenhum deles informou que Musk estivesse trabalhando sem autorização.
A Mohr Davidow Ventures não respondeu a um pedido de comentário.
Documentos obtidos pelo Post mostram que os executivos da Zip2 se reuniram com a advogada de imigração Jocelyne Lew em 21 de fevereiro de 1996, para discutir possíveis vias de visto para os irmãos Musk e outro cofundador canadense. Lew aconselhou os homens a minimizarem suas funções de liderança na empresa e a retirarem de seus currículos endereços nos EUA que pudessem sugerir que eles já estavam morando e trabalhando nos Estados Unidos, segundo os documentos.
Lew incentivou Musk a buscar outro visto de estudante na Universidade da Pensilvânia, onde ele havia estudado durante a graduação, segundo os documentos. Ela também o orientou a obter fotos tamanho passaporte que permitiriam que ele se inscrevesse na “loteria de vistos” dos EUA, de acordo com os arquivos.
Lew não respondeu aos pedidos de comentário.
Proudian, ex-membro da diretoria e investidor da Zip2, disse que a diretoria estava preocupada com o fato de que a falta de status de imigração legal dos fundadores teria que ser divulgada em um registro na SEC se a empresa fosse abrir o capital. Ele lembra que as autorizações de trabalho dos Musks foram concedidas por volta de 1997.
Uma pessoa que entrou para o departamento de recursos humanos da Zip2 em 1997 lembra-se de ter processado vistos de trabalho para os Musks e outros membros da família de acordo com uma categoria disponível para os canadenses no âmbito do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA).
Especialistas jurídicos disseram que Musk também pode ter violado a lei ao persuadir seu irmão a dirigir a empresa. Uma lei federal de 1986 tornou crime a contratação consciente de alguém que não tenha autorização de trabalho. Musk disse em 2003 e 2009 que “convenceu” Kimbal a vir do Canadá para trabalhar em sua empresa.
Registros arquivados na Secretaria de Estado da Califórnia mostram que Musk era o agente registrado da Global Link Information Network quando ela foi constituída em novembro de 1995. Em 26 de fevereiro de 1996, a empresa registrou Kimbal como presidente e CEO e Musk como secretário.
“Tentei obter um visto, mas não é possível obter um visto para fazer uma startup”, disse Kimbal em uma entrevista em 2021. “Eu estava definitivamente ilegal.”
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