Desconhecida por muitos, mas amada intensamente por seus usuários, a rede social Discord está prestes a virar gente grande: a startup pode fazer abertura de capital (IPO) na Bolsa ou ser comprada pela Microsoft por US$ 10 bilhões, de acordo com reportagem da Forbes. As duas possibilidades estão na mesa e ambas impulsionariam a plataforma de comunicação, que tem mais de 140 milhões de usuários mensais em todo o mundo.
O novo horizonte está menos relacionado com aquilo que Discord fez até aqui e mais atrelado às possibilidades de interação que a rede passou a exibir desde que a pandemia de covid-19 acelerou a digitalização de diversos serviços. Originalmente visto como uma rede social para jovens da Geração Z, o Discord se tornou uma ferramenta poderosa para o mundo do trabalho — o que explica parcialmente o interesse da Microsoft, uma das líderes nesse segmento.
A plataforma é uma mistureba de diversos instrumentos que vieram do cardápio de concorrentes: tem um pouco de inspiração no WhatsApp, no Slack, no Zoom, no Reddit e na Twitch — até o Clubhouse parece ter saído de uma costela do serviço. A rede social afirma que tem como objetivo promover “todo o tipo de encontro” virtual. É um conceito bem amplo, mas ajuda a explicar a diversidade de ferramentas que o aplicativo oferece.
Ao se cadastrar na rede, o usuário cria um “servidor”, algo que o Discord compara com um lar: “só entra quem você quiser. É como se fosse a sua casa”. Um usuário, por exemplo, pode criar diversos servidores (e participar de outros, claro) para diferentes públicos, similar a grupos no WhatsApp. Mas, ao contrário deles, em que as mensagens se amontoam conforme o fluxo da conversa, é possível separar os assuntos por chats diferentes. Enquanto dois amigos da faculdade discutem a próxima entrega de trabalho, outros três podem se reunir na conversa ao lado para falar da nova série em alta na Netflix.
A graça é que cada tópico criado gera automaticamente um chat separado para a conversa de voz, sem precisar abrir uma chamada e esperar que atendam a ligação. Clicou, falou. Aí faz mais sentido a comparação com o lar: um chat é a cozinha, outro é a sala, por exemplo. Basta sair de um para o outro, sem que a conversa seja interrompida pelas pessoas que sobraram. Parece um cruzamento de Slack com grupão de zap.
“O Discord é uma ferramenta muito poderosa e extensível”, aponta Marcelo Burghi Serigo, diretor de inovação e tecnologia da Accenture. Para ele, a plataforma traz ferramentas de comunicação que não fazem dela meras redes sociais, e sim instrumentos de comunicação, que podem servir perfeitamente para o mundo do trabalho. Exemplo: dentro do servidor de um time de uma empresa, há chats diversos para discutir os diferentes projetos e, ao longo do dia, os funcionários vão alternando de sala, preferindo texto ou áudio, a depender das necessidades.
Rede social da jogatina
Esse grau de versatilidade e agilidade não foi pensado para o mundo corporativo. Fundada em 2015 pelos gamers Jason Citron e Stan Vishnevskiy, a plataforma nasceu para ser uma forma de comunicação fácil e rápida para a comunidade de jogos online (como World of Warcraft), que precisa estabelecer estratégias em tempo real. Antes da chegada do app, um local comum de reunião dos jogadores era o Skype - coincidentemente uma propriedade da Microsoft.
Com o Discord, diminuiu a latência (tempo entre a fala ser dita e ser ouvida pelo outro lado da chamada) e aumentou a simplicidade para reunir grandes grupos. O serviço uniu boa tecnologia com ótima experiência, a grande fórmula para o sucesso no Vale do Silício. Hoje, é comum convidar amigos para jogar Among Us (um sucesso da quarentena) e papear no Discord.
É o caso da quadrinista Cecilia Marins, 23, que usa o Discord para jogar Fortnite. “O chat do nosso jogo não funciona e o Skype trava muito, então o Discord é uma boa alternativa”, conta. “É uma ferramenta simples de usar e mais leve.”
O isolamento social causado pela pandemia, no entanto, sacudiu o mundo da tecnologia. Novas plataformas foram descobertas e adotadas no dia a dia, como o Zoom. O Discord também se transformou e começou a abandonar a pecha de “rede social dos gamers”.
Cecilia conta que passou a usar o app para lazer e trabalho. Por exemplo, ela passou a acompanhar e discutir o BBB21 com amigos pelo serviço. No trabalho, ela costuma reunir-se com outras artistas e desenhar juntas em transmissões ao vivo para o público - é uma forma de divulgar o trabalho e manter contato com os fãs.
Cecilia conta também que participou da “comemoração” de um aniversário no Discord: o aniversariante criou salas de bate-papo chamadas de “fumódromo” e “balcão do bar”, por exemplo, para que as pessoas interagissem por áudio como se estivessem nesses ambientes. É o novo normal.
“A graça do Discord para mim é que está todo mundo junto, é uma rede social horizontal em que todos podem falar. Não é igual ao Clubhouse, em que existem ouvintes e palestrantes”, explica a quadrinista.
O diretor acadêmico da Digital House, Edney Souza, concorda e acrescenta que o aplicativo tem um senso de “comunidade” que os rivais não possuem. “As outras redes sociais viraram espaço para criar audiência. Você segue as pessoas no Instagram, mas não necessariamente fala com elas”, diz.
Vida adulta
O fato de o Discord ser uma ferramenta que abraça as comunidades online e que pode ser poderosa no mundo do trabalho explica o interesse da Microsoft. A dona do Windows é dona do Microsoft Teams, usado no mundo corporativo, e também do console Xbox, uma das maiores plataformas e comunidades dos jogos.
Daniel Ives, analista da consultoria WedBush e especialista em Microsoft, afirma que a compra significaria dobrar a aposta da empresa nos mercados de consumo e de games nos próximos anos. Por isso, faz todo sentido procurar ativos que possam expandir esse mercado, principalmente depois que o CEO Satya Nadella não conseguiu costurar acordos pela compra das operações americanas do TikTok e do Pinterest.
“O Discord veste como uma luva nesse nicho. O acordo seria um golaço e (desembolsar) US$ 10 bilhões é digerível em um mercado de US$ 400 bilhões. A Microsoft é agressiva em aquisições e fusões e o Discord seria um movimento ofensivo e defensivo na estratégia para o consumidor”, explica Ives.
Já Serigo levanta outro ponto: a compra da rede social poderia impulsionar o Azure, solução de nuvem da Microsoft que corre atrás da Amazon, líder nesse mercado. Ao adquirir o Discord, que viu em 2020 as pessoas passarem 1,4 trilhão de minutos em chamadas e enviar 656 bilhões de mensagens, a Microsoft teria amplo acesso aos dados da plataforma. “Dado e informação são poder hoje em dia. Como o Discord está atualmente hospedado na Google Cloud, existe interesse em trazer a plataforma para o Azure”, diz o especialista da Accenture.
O problema é que, para a rede social, ser adquirido pode não ser tão estratégico assim, já que a companhia está em pleno crescimento e existe a possibilidade de ganhar mais capital fazendo um IPO - segundo a Bloomberg, essa opção é atualmente preferida pela empresa.
“Talvez a Microsoft seja um parceiro adequado para o Discord, se o aplicativo quiser ir para esse tipo de segmento corporativo. Se quiser investir em entretenimento e games, talvez a aquisição não faça tanto sentido e existam melhores parceiros”, aponta. No passado, o estúdio Epic Games, responsável pelo sucesso Fortnite, já se interessou em comprar a rede social, mas o negócio não avançou.
Outro ponto é que o histórico da Microsoft não ajuda. A empresa até hoje é acusada de ter “estragado” o Skype, uma ferramenta de comunicação que nasceu muito antes de todas as redes sociais. Por outro lado, em aquisições recentes de plataformas de comunidade, como as do LinkedIn e do Github, a Microsoft parece ter incorporado os serviços sem solavancos.
“O histórico mostra que a Microsoft pode estragar. Mas tem que dar o benefício da dúvida”, adverte Souza. “Se ela criar oportunidades para o Discord, em vez de cercear o potencial e a liberdade criativa, os dois podem ir muito longe.”
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