Mais de três anos depois de Elon Musk surpreender a indústria automobilística com uma caminhonete elétrica que mais parecia um caça de guerra do que um veículo para transportar tocos de madeira e materiais de construção, a Tesla disse no mês passado que começaria a montar a picape até o final de 2023.
O anúncio ajudou a alimentar uma recuperação do preço das ações da montadora, mas também trouxe de volta o debate sobre se a caminhonete, chamada Cybertruck, cujo lançamento foi adiado tantas vezes, é um trabalho de gênio ou uma prova da arrogância de Musk.
Seria muito improvável o CEO da Tesla criar uma picape “comuns”, como semelhante a Ford F-150, a Chevrolet Silverado ou a Ram 1500 – três dos veículos mais vendidos nos Estados Unidos.
Com sua carroceria angular de aço inoxidável, a Cybertruck é uma tentativa de redefinir as picapes da mesma forma que a Tesla revolucionou o senso comum da indústria automobilística, provando que os veículos movidos a bateria poderiam ser práticos e lucrativos.
Segundo a Tesla, uma versão topo de linha da caminhonete será capaz de rebocar seis toneladas e acelerar mais rápido que um Porsche 911. As portas da Cybertruck vão abrir automaticamente quando o motorista se aproximar dela.
Ela é importante porque será o primeiro veículo lançado pela Tesla em três anos e poderia contribuir para dar um novo frescor a uma linha de modelos que alguns compradores consideram ultrapassada. Montadoras consagradas, como a Ford, General Motors e Hyundai, lançaram vários novos modelos elétricos desde que o Model Y, o último lançamento da Tesla, foi colocado à venda no início de 2020.
Nervos de aço
Entretanto, a Cybertruck está tão atrasada que alguns especialistas do setor se perguntam se ela virou outro exemplo da tendência de Musk de levar as fronteiras tecnológicas à beira do desastre. Em 2018, sua determinação em criar uma linha de montagem extremamente automatizada para o sedã Model 3 levou a um “inferno na produção” e quase acabou com a empresa antes de ele optar por práticas de fabricação mais padronizadas.
Desta vez, é a escolha do aço inoxidável para a carroceria da Cybertruck que faz com que os especialistas do setor balancem a cabeça em sinal de desaprovação.
O aço inoxidável resiste à corrosão e não precisa ser pintado, eliminando um custo e a necessidade de revestimentos químicos tóxicos para o meio ambiente. Mas ele também é caro e difícil de se modelar e soldar. Ele costuma ser mais pesado que o aço usado na maioria dos outros carros, reduzindo a autonomia do automóvel.
Há uma razão para apenas uma empresa do ramo ter tentado produzir em massa um veículo com uma carroceria em aço inoxidável. Foi a DeLorean, que faliu depois de produzir menos de 10 mil veículos, que são mais conhecidos por seu papel de protagonista como uma máquina do tempo nos filmes da trilogia “De Volta para o Futuro”.
“Musk é um exemplo de como a fetichização das startups de tecnologia e seus líderes pode mais cedo ou mais tarde levar esses líderes a tomar decisões ruins”, disse Patrick McQuown, diretor-executivo de empreendedorismo da Universidade Towson, em Maryland. “Para mim, a insistência no aço inoxidável é uma demonstração de sua convicção de que ele tem alguma compreensão única do mercado e que o mercado vai comprar tudo o que ele oferece porque saiu da mente de Elon Musk.”
Musk é um exemplo de como a fetichização das startups de tecnologia e seus líderes pode mais cedo ou mais tarde levar esses líderes a tomar decisões ruins
Patrick McQuown, diretor-executivo de empreendedorismo da Universidade Towson
O aço inoxidável custa mais do que o aço utilizado na maioria dos automóveis porque contém cromo e, muitas vezes, outros componentes, como o níquel e o molibdênio, que têm alta demanda. A tendência do aço inoxidável de voltar para sua forma original significa que não pode ser usado em para-lamas e outras peças tão facilmente quanto o aço mais flexível utilizado pela maioria das montadoras. Ele também exige técnicas especiais de soldagem.
Esses desafios provavelmente ajudam a explicar a razão da Tesla estar dois anos atrasada na fabricação da Cybertruck, que a empresa planeja produzir em sua fábrica em Austin, no Texas.
“A Tesla acha que pode resolver qualquer problema e não precisa aprender com mais ninguém”, disse Raj Rajkumar, professor de engenharia da Universidade Carnegie Mellon, “e depois ficam presos numa situação difícil de se lidar”.
A montadora disse em sua divulgação de resultados no mês passado que começaria a produzir a Cybertruck antes do fim deste ano. No entanto, Musk retificou essa afirmação durante uma reunião com analistas e investidores, dizendo que a empresa não começaria a fabricar o veículo em grande escala até 2024. Quando a Tesla apresentou a Cybertruck, afirmou que o veículo estaria à venda em 2021.
Ela “não contribuirá significativamente para o balanço final” de 2023, disse Musk, “mas fará isso no próximo ano”.
A Tesla praticamente não compartilhou qualquer informação a respeito de como superará os desafios de trabalhar com aço inoxidável, que incluem a segurança. O aço usado na maioria dos automóveis é projetado para amassar no caso de um acidente, absorvendo o impacto e protegendo os passageiros. O aço inoxidável não amassa tão facilmente, expondo os passageiros a mais força do impacto.
A Tesla não respondeu a um convite de posicionamento.
Foguete
Há indícios de que a caminhonete usará uma fórmula de aço inoxidável igual ou semelhante à utilizada pela SpaceX, a empresa de foguetes comandada por Musk. Charles Kuehmann, vice-presidente de engenharia de materiais da SpaceX, tem o mesmo cargo na Tesla.
Kuehmann foi cofundador da QuesTek, uma empresa de design de materiais, e trabalhou numa equipe de design na Apple. Sua reputação como pioneiro no uso de novos materiais dá a certeza a alguns especialistas em engenharia de que a Tesla desenvolveu uma liga que superará os desafios do aço inoxidável.
Kuehmann não respondeu a um pedido de comentário.
A carroceria da Cybertruck não tem nenhuma das curvas típicas da maioria dos veículos, apresentando em vez delas painéis planos de aço que, segundo especialistas, provavelmente são cortados com lasers e depois soldados, acabando com a necessidade de máquinas de estamparia potentes.
“De modo geral, o conceito pode fazer sentido”, disse Kip Findley, professor de engenharia metalúrgica e de materiais na Escola de Minas do Colorado, que fez pesquisas sobre aço avançado para veículos. “Isso está estimulando o avanço da evolução do aço e fazendo as pessoas pensarem sobre ele de uma maneira diferente, o que é bom.”
Isso está estimulando o avanço da evolução do aço e fazendo as pessoas pensarem sobre ele de uma maneira diferente, o que é bom
Kip Findley, professor de engenharia metalúrgica na Escola de Minas do Colorado, EUA
“Mas há algumas questões em aberto”, acrescentou Findley. Elas incluem como os proprietários irão consertar os danos à carroceria da Cybertruck, à qual a Tesla se refere como um “exoesqueleto”. O aço inoxidável amassa menos facilmente que o aço convencional da carroceria de um carro, porém, uma vez danificado, ele é mais difícil de recuperar o formato original.
Como a única empresa a produzir em massa carrocerias de aço inoxidável, a Tesla não vai conseguir tirar proveito da economia de escala compartilhada por outras montadoras. Isso poderia tornar a produção da caminhonete mais cara.
Quando a Tesla apresentou a Cybertruck, disse que o preço inicial seria de pouco menos de US$ 40 mil. Mas a expectativa é de que o preço final fique bem acima disso.
A Tesla está aceitando reservas para a Cybertruck, que custam US$ 100, mas não menciona qual será o preço do veículo. Não foi divulgado quantas reservas foram feitas.
No mínimo, a Cybertruck vai se destacar em uma área cheia de opções.
As carrocerias de aço inoxidável são “possíveis com certeza”, disse Wei Xiong, professor de metalurgia e design de materiais da Universidade de Pittsburgh, observando que o design auxiliado por computador permite aos pesquisadores desenvolver materiais de alto desempenho muito mais depressa do que há alguns anos. “Entendo por que ele quer seguir esse caminho.” / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
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