Reguladores antitruste dos EUA estão de olho nas gigantes de tecnologia

Há uma crescente reação entre acadêmicos e autoridades que tenta leva em conta a influência exercida por Facebook, Google, Amazon e Apple

PUBLICIDADE

Por David Streitfeld
Atualização:
Discussões sobre regulação antitruste para gigantes de tec se intensifica Foto: Reuters

Quando os americanos temem o futuro, eles se voltam para a ação antitruste.

PUBLICIDADE

Aconteceu na década de 1890, quando os Estados Unidos passavam rapidamente de uma economia agrícola para uma industrializada. Aconteceu de novo no final da década de 1940, quando a guerra nuclear parecia iminente. E isso está acontecendo agora, pois grandes empresas de tecnologia trabalham com inteligência artificial que ameaça criar um mundo onde os seres humanos serão os eternos perdedores.

“Há um velho ditado que diz que a história nunca se repete, mas muitas vezes rima, e definitivamente estamos em um modo de rima”, disse Edward O'Donnell, historiador do College of the Holy Cross, em Massachusetts. “Nossas preocupações sobre o nosso futuro tecnológico estão nos levando de volta para soluções de nosso passado industrial”.

Por décadas, a regulamentação antitruste tem sido predominantemente focada no bem-estar do consumidor. Se não houver custo para o consumidor, então não há problema. Isso abriu as portas para que Google, Facebook, Apple e Amazon - que ofereciam serviços digitais baratos ou gratuitos - se tornassem empresas imensamente lucrativas e poderosas.

Publicidade

Agora, há uma crescente reação, à medida que acadêmicos rebeldes tentam reverter anos de uma doutrina estabelecida que, segundo eles dizem, não leva em conta adequadamente a influência exercida por elas. O absolutismo econômico está abrindo caminho para outras considerações, já que o pensamento antitruste remonta às suas raízes.

“As pessoas podem gostar de usar as plataformas de tecnologia, mas também se indagam: que tipo de sociedade queremos?”, Disse Hal Singer, pesquisador do Instituto de Políticas Públicas da George Washington University. “Estamos em um desses momentos antitruste”.

A mudança para o pensamento antitruste ganhou força recentemente. Este mês, os reguladores dos EUA indicaram que estavam olhando para a Big Tech, grupo das gigantes da tecnologia, inspirando uma onda de comentários do tipo “está na hora”, vindos de políticos de todo o espectro. Desde então, o presidente Donald Trump, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e o presidente do Judiciário da Câmara, Jerrold Nadler, endossaram, cada um à sua maneira, uma análise mais aprofundada sobre os gigantes da tecnologia.

Makan Delrahim, funcionário do Departamento de Justiça encarregado de casos antitruste, recentemente fez um discurso em Israel no qual ele reforçou os esforços nesse sentido ao rejeitar o padrão de bem-estar do consumidor como o único fator determinante de dano. Ele chegou a afirmar que a “redução da qualidade” pode prejudicar a concorrência, o que poderia mandar os responsáveis pela regulamentação para algumas áreas novas. Delrahim concluiu dizendo que a divisão antitruste “está trabalhando muito para permanecer fiel” à visão original de John Sherman, o senador de Ohio cujo nome está no ato antitruste de 1890 que foi a primeira legislação contra monopólios.

Publicidade

De olho no passado 

A Lei Sherman Antitruste foi aprovada no Senado por 51 votos a 1, enquanto a Câmara a endossou por unanimidade. Tinha apenas duas páginas, não se preocupou em definir a palavra “monopólio” e foi usada em sua primeira década para ir atrás da questão trabalhista. Alguns historiadores acham que o Congresso conservador que a aprovou estava meramente sendo cínico, oferecendo uma pequena ajuda aos reformadores.

O medo do futuro, no entanto, era real à medida que a economia se transformava. Em 1890, a porcentagem da população na agricultura estava em 43%, abaixo dos 72% em 1820. As siderúrgicas, frigoríficos e ferrovias contrataram e depois contrataram mais pessoas. O número de milionários subiu de algumas centenas antes da Guerra Civil para cerca de 4.000 em 1890, calculam os historiadores.

 "O medo crescente do dia era que as pessoas honestas e trabalhadoras estavam sendo sendo enganadas e o sistema manipulado”, disse Edward O'Donnell, autor de Henry George and the Crisis of Inequality: Progress and Poverty in the Gilded (“Henry George e a crise da desigualdade: progresso e pobreza na era dourada, em tradução livre). As pessoas dependiam cada vez mais de grandes empresas como a Standard Oil, assim como seus descendentes hoje não podem sair do Facebook e do Google. Mas eles não gostavam deles, obrigatoriamente.

Publicidade

PUBLICIDADE

“Quase todos os lares tinham uma lata vermelha de 5 galões de querosene da Standard Oil”, disse O'Donnell. "Mas o fundador, John D. Rockefeller, era em geral encarado como um polvo voraz.”

Em 1900, a plataforma do Partido Democrata incluía a crença de que “os monopólios privados são indefensáveis e intoleráveis”, declarando: “A menos que sua ganância insaciável seja verificada, toda a riqueza será reunida em poucas mãos e a República destruída”.

Seguiram-se reformas inovadoras, incluindo a dissolução da Standard Oil. Em 1913, em um episódio em grande parte esquecido, a National Cash Register Co. tornou-se a primeira empresa de tecnologia a ser processada com sucesso por violar a Lei Sherman. Cerca de 30 executivos da empresa, que controlavam 95% do mercado de caixas registradoras, foram condenados e sentenciados a breves períodos na prisão. Embora eles tenham recorrido e nunca ficaram presos um único dia, o poder da empresa foi quebrado.

Os movimentos antimonopólio recuaram e fluíram ao longo do século XX. No final dos anos 1940, disse Daniel Crane, um historiador antitruste da Universidade de Michigan, “houve um bocado de alarme sobre a crescente onda de concentração industrial após a guerra, com o temor de que níveis indevidos de concentração pudessem levar o fascismo ou o comunismo ao poder.”

Publicidade

Em meados da década de 1950, os americanos se reconciliaram com o fato de trabalhar para grandes corporações, mas o fator antitruste continuou sendo uma força poderosa.

 “Qualquer um que saiba alguma coisa sobre a conduta dos negócios americanos sabe que os administradores das grandes corporações fazem seus negócios com um olho constantemente mirando a divisão antitruste”, escreveu o historiador Richard Hofstadter em 1964.

Perigo para as gigantes da tecnologia

Um dos casos mais controversos da época passa por um ressurgimento: Brown Shoe Co. Inc. versus Estados Unidos. O caso começou em 1956, quando a Brown Shoe, fabricante e varejista, fundiu-se com a G.R. Kinney Co., que também fabricava e vendia sapatos para os clientes. O governo processou, dizendo que a fusão aumentaria a concentração na produção e venda de calçados, eliminaria um grande competidor e privaria outras empresas de calçados de uma oportunidade justa de competir. O governo ganhou o caso no tribunal distrital e depois, em 1962, no Supremo Tribunal.

Publicidade

O caso pode trazer pesadelos para Amazon, Facebook, Google e Apple. O motivo: o modo como as autoridades regulamentadoras definiram a concentração prejudicial em um mercado. Na época, a Brown Shoe e a Kinney juntas detinham apenas 7,2% das lojas de calçados de varejo do país, e as lojas de calçados não eram o único lugar para comprar sapatos. O mais próximo que a empresa resultante da fusão chegou de um monopólio foi em seis cidades, onde vendia mais de 40% de calçados infantis.

O Google, em contraste, tem 92% do mercado mundial de buscas hoje, enquanto o Facebook tem 70% do mercado de mídia social e a Amazon cerca de 38% do mercado de e-commerce nos Estados Unidos, segundo dados de empresas de pesquisa. (Argumentos antitruste contra a Apple são menos sobre a participação de mercado e mais sobre como ela trata os concorrentes em sua App Store.)

O argumento da Brown Shoe de que a indústria de calçados era “dinamicamente competitiva” não influenciou as mentes. O presidente da Suprema Corte, Earl Warren, escreveu que “a proteção de pequenos negócios locais e viáveis” era uma prioridade, mesmo que “ocasionais custos mais elevados e preços” pudessem ser o resultado.

“O caso da Brown Shoe é uma “decisão antitruste fundamental, mesmo que incorpore valores que foram alterados fundamentalmente”, escreveu C. Paul Rogers III, professor da Faculdade de Direito SMU, no ano passado na SMU Law Review.

Publicidade

Em uma entrevista, ele disse: “O tribunal estava muito preocupado com as tendências em direção à concentração e crescimento por aquisições. Ignorou os argumentos pela eficiência, dizendo que os ganhos de eficiência poderiam na realidade ser negativos, porque podem espremer os pequenos. “Ele acrescentou acreditar que o caso estava erroneamente decidido quanto aos seus fatos, “mas se essa abordagem populista retornar, seria assustadora, para esses gigantes de alta tecnologia extremamente eficientes”.

Apple, Amazon, Google e Facebook se recusaram a comentar sobre o caso Brown Shoe.

Como derrubar o antitruste

Se os populistas ganharem mais ímpeto, eles têm meios de derrubar o establishment antitruste, que ainda segue o padrão de bem-estar do consumidor desenvolvido por Robert Bork, influente estudioso e juiz de direito, e estudiosos da Universidade de Chicago a partir dos anos 1970.  Alguns especialistas, como Singer, da Universidade George Washington, estão esperando para ver o quanto são sinceros os regulamentadores em seu zelo recém-descoberto - e para onde exatamente pretendem ir. Delrahim, do Departamento de Justiça, mencionou em seu discurso algumas aplicações incomuns de antitruste, incluindo “proteções à privacidade” e “liberdade de expressão nas plataformas”.

Publicidade

Singer disse que a última foi uma homenagem a Trump, que disse que ele e alguns de seus defensores foram tratados de forma injusta nas mídias sociais. Quanto à privacidade, “estou muito cético quanto ao fato de que mais concorrência fará com que as plataformas explorem menos os dados de usuários”, disse ele. “Toda a razão de sua existência é explorar os dados do usuário".

Pelo menos por enquanto, no entanto, os reformadores estão em alta e os economistas na defensiva.

“O povo americano criou a lei antimonopólio para que qualquer um possa compreender as normas”, disse Barry Lynn, diretor-executivo da Open Markets, uma entidade de Washington que defende a reforma antitruste. “Os agentes da lei seguiram as diretrizes que limitavam as empresas industriais a possuírem 25% de qualquer mercado. Para impor a lei, em outras palavras, tudo o que você precisava fazer era contar até quatro. Nós não precisamos de economistas que nos ajudem a contar até quatro”.

Mesmo que os reformadores vençam decisivamente, os argumentos sem dúvida continuarão a ser apresentados. A coisa mais verdadeira já dita sobre antitruste veio de Robert Pitofsky, presidente da Comissão Federal de Comércio no final dos anos 1990.

Publicidade

“A aplicação das fusões nos Estados Unidos”, disse ele, “tem sido frequentemente instável e sempre controversa”./TRADUÇÃO CLAUDIA BOZZO

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.