Em um episódio específico da série de ficção científica Black Mirror, o enredo mostra uma sociedade alternativa em que a maioria da população tem implantes na cabeça que gravam tudo o que elas fazem, veem e ouvem para que possam acessar essas lembranças depois. Após o fenômeno ChatGPT, chatbot inteligente da OpenAI, que abriu de vez as portas para outras inteligências artificiais (IA) no dia a dia das pessoas, essa “memória externa” também pode ser, de certa forma, possível. A startup americana Rewind quer ser uma assistente pessoal eficiente nesse sentido, mas, para isso, seu sistema vai gravar tudo que você acessa e escuta em seu computador.
O serviço, que contabiliza cerca de 10 mil usuários, de acordo com a empresa, tem assinatura mensal ou anual e funciona como uma espécie de ChatGPT pessoal. O software armazena os dados de todas as atividades feitas pelo usuário em seu computador – de videochamadas a e-mails, passando por qualquer aplicativo utilizado nesse meio tempo – e, em seguida, ao ser questionada por meio de um chat, a IA consulta as memórias guardadas e apresenta os resultados mais relevantes.
Há três opções de assinatura do Rewind: gratuito, US$ 12 ou US$ 36 mensais, o que varia são as funcionalidades incluídas em cada um. Por enquanto o serviço está disponível apenas em inglês e somente para o sistema operacional dos computadores da Apple.
“O principal benefício do Rewind é dar aos humanos uma ‘memória perfeita’. A IA serve como uma extensão de sua mente e permite que você seja mais produtivo”, explicou Dan Siroker, CEO da empresa, em entrevista ao Estadão.
“O que eu fiz na semana passada?”, pergunta o usuário na caixa de perguntas da direita. “Semana passada, você teve várias atividades e reuniões agendadas. No dia 20 de março, você participou de uma chamada no Zoom com Derek Hammond, onde o time discutiu questões como a ferramenta ‘compartilhe com você mesmo’ e quais as melhorias necessárias para o recurso”, responde o Rewind, indicando que ouviu a conversa, identificou os assuntos e as pessoas envolvidas.
No Twitter, um usuário do serviço disse ter conseguido recuperar horas de anotações com o Rewind, já que havia perdido o documento ao tentar movê-lo dentro do app de organização Notion. “Isso teria arruinado meu dia. Mas graças a Deus eu estava usando o Rewind. Recuperei tudo em menos de 10 minutos”, postou a conta @alyssaatkins.
Segundo o site da companhia, fundada pelos empresários Brett Bejcek e Dan Siroker, foram arrecadados mais de US$15 milhões de investidores como Sam Altman, CEO da OpenAI, e o fundo de investimento Andreessen Horowitz.
Para Humberto Sandmann, professor de Sistemas de Informação da ESPM e especialista em inteligência artificial, serviços semelhantes têm ganhado espaço no mundo empresarial. “Essas máquinas (que o funcionário usa) para trabalho remoto acabam sempre tendo algum sistema de controle para monitorar as horas de trabalho. Esse seria um passo avançado nessa linha. Com relação a reuniões, (a IA) está virando uma ferramenta de auditoria dentro das empresas”, observa.
Privacidade
Entretanto, a primeira questão que surge ao pensar na quantidade de dados fornecidos à ferramenta é sobre como ela vai proteger a privacidade de quem usa o recurso. Em seu site, a Rewind afirma ter uma abordagem focada na privacidade, a fim de proteger as memórias de seus clientes. Para isso, as gravações de tela e áudio são armazenadas na própria máquina do usuário e, geralmente, não são enviadas para fora dela.
“Nenhuma tela ou gravação de áudio sai do seu computador. Enviamos apenas a representação em texto dos momentos específicos necessários para responder à sua pergunta”, afirma Siroker.
Ao usar o recurso de resumir reuniões ou o recurso Ask Rewind, quando você pode consultar a IA num chat, porém, a empresa explica que envia para nuvem o que considera “dados relevantes” baseados em texto, “excluindo informações pessoais sensíveis, como números de cartão de crédito e de de identificação social”, segundo o site. Ao Estadão, Siroker não esclareceu quais dados são classificados como sensíveis ou por quanto tempo as informações ficam armazenadas em seu sistema.
Durante a utilização do programa, o usuário pode escolher quais aplicativos serão gravados e pausar a gravação da tela ou do microfone a qualquer momento. Ainda, é possível deletar os arquivos que o cliente prefere não armazenar no computador — a nível local, o usuário pode escolher por quanto tempo os dados permanecerão guardados em seu dispositivo e desativar a análise do produto e o relatório de falhas a qualquer momento.
Recentemente o ChatGPT suscitou discussões sobre a privacidade de dados, em especial quando grandes companhias, como Samsung e Apple, proibiram seu uso entre os funcionários para evitar vazamentos de informações privadas.
Na contramão da velocidade de novos serviços que têm acesso a cada vez mais dados dos usuários, para Sandmann, as leis ainda “estão muito atrasadas” em relação ao tema. “Tem um aspecto legal, do ponto de vista de que, quando você assina o Rewind, por exemplo, você está fazendo um contrato de privacidade com eles. Então, em teoria, se algum dado vazar, você pode acionar juridicamente a empresa”, pontua o especialista.
Nossa memória está mesmo tão ruim?
Segundo o neurocientista Li Li Min, professor do Departamento de Neurologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), não é possível ser categórico ao afirmar que nossa memória em geral piorou, mas existem vários fatores que a afetam. Dois deles, muito presentes em nossa sociedade moderna, são a ansiedade e o burnout, síndrome que é resultado do estresse crônico no trabalho, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
“No circuito do estresse, ansiedade e burnout causam esses efeitos corporais sistêmicos. É muito claro que pacientes com ansiedade e as pessoas que estão nesse circuito vão ter dificuldade de memorização”, explica o médico. Essas doenças também afetam o sono, que está diretamente relacionado à consolidação das informações recebidas no cérebro.
Para Min, nesse cenário surgem iniciativas – até mesmo de entretenimento – que pretendem lembrar o usuário de certos momentos. O neurocientista usa como exemplo o aplicativo Google Fotos, que envia notificações com lembranças de fotos antigas armazenadas no aplicativo. “Acho que cada um vai escolher o limite que vai dar para a tecnologia, e quanto a gente vai deixá-la tentar nos influenciar”, reflete.
Apesar disso, a balança de contrapontos entre privacidade e usufruir de ferramentas que facilitam o dia a dia tem encontrado um peso cada vez mais equivalente nos dois lados, seja pela facilidade ou pelos serviços que essas IAs podem oferecer. “Existe uma teoria de que as novas gerações vão se preocupar muito com a privacidade. Mas, o que eu noto, é que isso não é uma novidade, no sentido de que as pessoas estão, sim, dispostas a abrir mão da privacidade um pouco”, destaca Sandmann.
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