“Fui criada com muito amor pelos meus pais adotivos, mas sempre falta alguma coisa. A gente quer descobrir manias, com quem se parece, até uma herança emocional que está ligada aos nossos parentes biológicos”, conta Silvana Palumbo, 55. A busca pelas próprias origens é uma das perguntas fundamentais que a humanidade tem feito a si mesma durante toda a história. Atualmente, startups que analisam de maneira tecnológica o DNA têm tentado ajudar nessa busca — foi o que Silvana fez ainda em 2014.
No Brasil, onde a análise de DNA parecia coisa de programas popularescos como o do apresentador Ratinho, essas empresas começam a ganhar espaço, muitas delas surfando na boa onda das “healthtechs”— só em 2021, receberam US$ 52,3 milhões em investimentos. Ao contrário do apresentador do SBT, porém, essas startups apostam numa gama maior de informações, que vão desde ancestralidade até probabilidade de doenças e mutações nos genes, além de serviços mais baratos e acessíveis. Tudo isso vem gerando interesse.
Segundo um estudo publicado na revista MIT Technology Review, mais de 26 milhões de pessoas já cederam amostras para testes de DNA em todo o mundo até 2019. No Brasil, a pesquisa por esses exames no Google viu um crescimento de até 300% nos últimos 12 meses, o que indica espaço para crescimento do mercado.
Joana Lima, 23, é uma das curiosas que fez um exame. “A minha família sempre foi uma incógnita. Meus pais são de origem humilde e a gente não tem tanta informação. Sei que meu pai é filho de um homem negro e uma mulher com ascendência portuguesa, e que da parte da minha mãe eram indígenas. Descobri que tinha um porcentual grande na Europa, na África e inclusive um pouco da Rússia, algo que eu nem imaginava”.
Os testes têm evoluído também para antecipar possibilidades de doenças. Já é possível encontrar exames de empresas como a MeuDNA, que oferece testes de ancestralidade e saúde, indicando a probabilidade de oito tipos de câncer por meio de um software de leitura do exoma, que identifica 100% do material genético. Nessa modalidade, cada kit custa R$ 1,2 mil.
Algumas apostam também em medicina personalizada, extraindo mais dados específicos de cada pessoa. A Biogenetika, por exemplo, é uma empresa focada apenas em resultados de bem-estar, com a possibilidade de descobrir qual a melhor dieta e qual o melhor treino para ficar em forma, com preços que variam de R$ 750 a R$ 2,6 mil. Já a Genera inclui em um de seus pacotes a opção de descobrir a performance atlética e o risco de fotoenvelhecimento por R$ 500. Todos os testes podem ser comprados nos sites das empresas.
Funcionamento
Os exames de DNA feitos aqui no Brasil sobre ancestralidade e saúde, em geral, utilizam uma base de dados genética de comparação dos genes do cliente. A partir do sequenciamento do material genético, que é feito por máquinas e software, o DNA é desmembrado em pequenas partes, que identificam as características das pessoas.
A nível de DNA, cada gene tem sua própria informação e cada mutação pode indicar uma nova característica pessoal. É com base em bancos de dados, estudos científicos e algoritmos de reconhecimento de genes que o laboratório consegue “traduzir” as informações— é dessa maneira, por exemplo, que é possível determinar a localidade de origem do material genético.
“Existem tecnologias diferentes para o sequenciamento. Para os testes de ancestralidade, existe uma tecnologia chamada SNP Array, que captura apenas algumas partes do material genético. Já no caso de mapeamento de doenças, os resultados precisam ser mais precisos, então utilizamos uma tecnologia voltada ao exoma, que sequencia todos os genes”, afirma Cesário Martins, diretor da MeuDNA, startup fundada em 2019 que já captou mais de R$ 40 milhões em aportes.
Na Genera, que também trabalha com saúde e origens, o teste completo ainda indica a possibilidade de doenças como diabetes e colesterol, além de relatórios farmacológicos sobre remédios que têmmais ou menos efeitos colaterais naquele indivíduo. A empresa surgiu em 2010 e viu seu crescimento aumentar em mais de 20 vezes no ano passado em relação a 2019.
“Comparamos os resultados com uma base de dados de artigos científicos que têm dados fenotípicos. Em cada relatório, temos a literatura científica. Procuramos nela marcadores genéticos que se correlacionassem com determinadas condições”, explica Ricardo di Lazzaro, fundador da Genera.
Os resultados podem justamente ser um incentivo para procurar um médico. Raphael Dantas, 36, descobriu a propensão para várias doenças em seu resultado, entre elas diabetes tipo 2 e colesterol alto. A consulta médica confirmou: era preciso iniciar um tratamento imediatamente.
“Eu não tinha costume de fazer exames de saúde e fiz o teste biológico, que apontou que eu tinha propensão elevada para algumas doenças. Há duas semanas, eu fiz um check-up e os resultados revelaram que eu já estou apresentando essas doenças. Foi bastante útil para planejar minha saúde, apesar dos dados no Brasil ainda serem limitados”, explica Dantas.
Os laboratórios, porém, deixam bem claro que os resultados não substituem um laudo médico. Mesmo ao indicar a probabilidade de certas doenças, com base na tecnologia de reconhecimento do material genético, ainda é preciso procurar um especialista. Isso porque fatores como alimentação, estilo de vida e questões psicológicas podem ter influência no desenvolvimento de patologias.
Privacidade
A coleta desses dados para bases de startups, claro, gera questões de privacidade. De acordo com as empresas, todos os clientes têm o direito de não aceitar que suas informações sejam armazenadas na empresa, mas aqueles que o fazem entram para um rol de pesquisas científicas, bases de dados e levantamentos da própria empresa.
Juliana Ruiz, advogada da área de proteção de dados pessoais, afirma que, seguindo a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), essas empresas não podem compartilhar os dados de seus clientes com fins comerciais — para operadoras de planos de saúde, por exemplo — nem utilizar os dados sem autorização. Essas informações são classificadas como “dados pessoais sensíveis” e guardam restrições em relação aos demais.
“Ainda existe uma regulamentação esparsa sobre utilização de material genético humano. Em princípio, o compartilhamento com planos de saúde, por exemplo, não pode ser automático. No caso de ancestralidade, a boa prática diz que não se deve compartilhar. Nos casos de saúde, a lei não permite que o compartilhamento identificado aconteça em massa”.
O risco, porém, está nos detalhes que a lei ainda não atua. Com o desenvolvimento de produtos em uma área relativamente nova, Juliana afirma que ainda é difícil definir o que pode ou não ser feito com o material genético humano armazenado por essas empresas. Segundo ela, as aplicabilidades mudam com frequência e cabe aos laboratórios verificar e fortalecer a segurança desses dados.
Algumas empresas já tiveram de lidar com esse problema. A israelense MyHeritage, que também atua com testes no Brasil, foi vítima de um vazamento de informações de seus clientes em 2017. A empresa confirmou que perdeu dados de mais de 92 milhões de usuários, inclusive cerca de 3 milhões pertencentes ao Brasil. O incidente foi resultado de uma invasão hacker, que vazou e-mails e senhas, e acendeu um alerta para a vulnerabilidade de sistemas que comportam informações genéticas.
“São dados que têm potencial de revelar muito sobre as pessoas. Eles demandam cuidado", afirma Juliana.
Irmãs
O risco de segurança não fez Silvana recuar na sua busca por parentes. Desde o primeiro teste, em 2014, a secretária executiva fez questão de deixar seus dados disponíveis na plataforma para ter acesso a outros familiares. Teve resultado. Em 2018, Silvana encontrou um primo de 2.º grau. Na sequência, descobriu que tinha uma irmã, Ivone Conti, 58 — a única das duas a saber da existência de uma irmã biológica que havia sido colocada para adoção.
“Ganhei o teste de presente e demorou muito para aparecer alguém com informação compatível com a minha. Encontrei muito preconceito com pessoas adotadas. Quando encontrei um primo, ele foi receptivo. Um mês depois, ele me ligou dizendo que eu poderia ser filha de uma tia-avó dele e que eu tinha uma irmã que sabia que meu nome era Silvana”.
As duas moravam no mesmo bairro quando eram crianças e tinham o mesmo círculo de amigos, mas nunca se conheceram. Após o reencontro, em 2020, as irmãs recorreram à tecnologia novamente. Silvana mira agora em encontrar seu pai pelas mesmas plataformas de DNA.
“Apareceu um ‘match’ alto de um parente que pode ajudar na busca pelo meu pai. São quatro possíveis pessoas que podem ser ele. Uma tia indicou quatro irmãos que vieram para São Paulo, onde nasci, e agora estou procurando pelos nomes”.
*É estagiária sob supervisão do editor Bruno Romani
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