Atualizado em 7 de janeiro às 11h para incluir posicionamento do iFood
O Uber anunciou nesta quinta-feira, 6, que vai descontinuar no Brasil o serviço de delivery de restaurantes no Uber Eats. Segundo a empresa, a plataforma vai trabalhar por aqui, agora, somente com a função de supermercado, por meio da Cornershop, e de entregas corporativas. O serviço de entrega de restaurantes vai funcionar até 7 de março — os clientes foram informados do encerramento do serviço por e-mail nesta tarde.
O encerramento das atividades seria parte de um processo de reestruturação da empresa, que tem sofrido no segmento de entrega de comida no mercado nacional diante do domínio do iFood – a saída ocorrerá apenas no País. Mesmo com a alta do segmento de delivery de comida durante a pandemia de coronavírus, a empresa americana sofria com a rival brasileira.
“O Uber Eats estava em uma situação muito difícil por aqui. Por um lado, ele precisava enfrentar o iFood, que tem 70% do mercado. Por outro, existe uma competição muito intensa entre os concorrentes menores. Isso tudo tem um custo muito alto”, explica Sérgio Molinari, presidente da consultoria Food Consulting.
Uma pesquisa da consultoria feita em novembro mostrou que “encontrar os restaurantes favoritos” é motivo para 57% dos clientes desses apps optarem por uma única plataforma – a pesquisa mostrou ainda que 51% das pessoas usam apenas um serviço de delivery.
A batalha da exclusividade já virou motivo de reclamação. Em março do ano passado, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) proibiu que o iFood firmasse novos contratos de exclusividade com restaurantes, após uma denúncia do Rappi em relação à restrição de concorrência.
Até então, a acusação era de que o iFood estaria usando a plataforma para buscar contratos exclusivos em restaurantes considerados 'chave' na atração de clientes para apps de comida. “As exclusividades estariam sendo firmadas, inclusive, mesmo após a abertura do procedimento de apuração no Cade”, afirmou o órgão.
Em julho do ano passado, outro movimento deflagrou a dominância do app da Movile no mercado de entregas: empresas como Outback, Giraffas, Bob’s e Rei do Mate entraram com um pedido no Cade para a criação de uma plataforma própria de delivery, por considerarem as taxas cobradas pelo iFood muito altas. A intenção era, além de se livrar de gastos, aumentar a concorrência no setor.
“Quando existe um concorrente do tamanho do iFood, sobram poucos restaurantes de primeira linha, o que pesa para que as pessoas deixem de usar”, diz Molinari. Sem conseguir disputar restaurantes, e diante de um cenário no qual a maioria das pessoas opta por um único app de delivery, o Uber ficou com poucas opções. Nos EUA, onde Uber é o segundo colocado do mercado de delivery de comida, o líder DoorDash tem apenas 40% do mercado.
Não é a primeira vez que uma empresa de delivery de comida estrangeira abandona o mercado brasileiro: a espanhola Glovo saiu do Brasil em março de 2019.
Em nota à reportagem, o iFood diz: "O iFood não comenta decisões de negócio de outras empresas. Com relação ao mercado de entrega de refeições, o iFood esclarece que o setor de delivery online segue em constante evolução com a entrada frequente de novos competidores e o surgimento de novos modelos de negócios. Essa competição intensa favorece restaurantes, entregadores e consumidores, e promove mais inovação para todo o ecossistema".
Estratégia
O Uber afirmou ao Estadão que a estratégia agora é focar no serviço de entregas corporativas, o Uber Direct, que tem crescido na plataforma. De acordo com a companhia, a troca de nichos é um negócio mais "assertivo" dentro do que o Uber quer operar no País.
"O Uber vai alterar sua estratégia de delivery no Brasil, desativando o serviço de intermediação de entrega de comida de restaurantes. A partir de agora, a empresa vai trabalhar em duas frentes: com a Cornershop by Uber, para serviços de intermediação de entrega de compras de supermercados, atacadistas e lojas especializadas; e de entrega de pacotes pelo Uber Flash", afirmou a empresa em comunicado.
“Atuar em menos segmentos e com uma inteligência maior é uma necessidade. Olhando a perspectiva estratégica do Uber no mundo, faz mais sentido que eles apostem em serviços mais específicos e direcionados. O Uber não é uma empresa brasileira, então eles têm alguma dificuldade de adaptação de seus serviços à realidade muito peculiar do Brasil”, afirma Rubens Massa, professor do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da FGV.
O que pode pesar também na decisão, segundo especialistas, é o fato de que segmento de supermercado e logística é mais fragmentando, o que permite competir melhor.
Contexto brasileiro em crise global
A decisão por reduzir perdas no Brasil acontece em um contexto de pressão global na operação financeira do Uber, que ainda não viu lucro desde a criação da empresa. Na pandemia, a empresa foi abalada no seu negócio principal, de transporte de passageiros, que não foi amenizada com o aumento do delivery.
“O Uber vem sofrendo uma pressão do mercado para se estabilizar. Consequentemente, estão aumentando o foco em algumas operações. Provavelmente esse modelo no Brasil reflete a estratégia mundial de busca por resultados. Acompanhando esse contexto, me parece bem claro que existe uma preocupação financeira em busca de mercados mais lucrativos e talvez uma verticalização maior de operação”, explica Massa.
Desde o início da pandemia, o Uber já demitiu mais de 3 mil funcionários em todo o mundo, para cortar gastos da empresa, que ainda não opera com lucro expressivo desde sua fundação. No Brasil, em meados de 2020, cerca de 150 pessoas foram afetadas pelas demissões da empresa.
"Se é uma decisão estratégica, certamente eles querem dar foco em outros nichos, o que faz sentido. Mas, sem dúvida, se o negócio de delivery estivesse performando bem, financeiramente eles não iriam abandonar o segmento", ressalta David Kallás, professor de estratégia e coordenador executivo da pós-graduação do Insper.
"O Uber vive o seu pior momento no Brasil. Além do que houve com o Uber Eats, o negócio principal da empresa vem sofrendo com a alta da gasolina, o que gerou queda na qualidade do serviço", afirma Molinari.
App não vai sair do ar
O aplicativo do Uber Eats vai continuar funcionando normalmente, mas não será possível encontrar a opção de restaurantes. Para compras de supermercado, a plataforma vai continuar utilizando a aba da Cornershop que já existe dentro do app. Outras opções de delivery, como lojas especializadas, pet shops, floriculturas, lojas de bebidas e outros artigos, segundo a empresa, continuarão disponíveis para pedidos. Principal aposta no app a partir de agora para consumidores diretos, a Cornershop é uma startup chilena de supermercados, comprada pelo Uber em 2019. Por aqui, as operações começaram em meados de 2020, já em conjunto com a empresa de mobilidade.
A empresa também informou ao Estadão que alguns setores, como de papelaria e objetos em geral, já estão entrando no app, mas que devem aumentar a presença ao longo dos meses. Na prática, é como se o Uber estivesse aproximando o seu serviço de uma operação mais semelhante à colombiana Rappi e se distanciando do iFood. Outros serviços focados em entregas corporativas com o Uber Direct também já têm grande parte das operações da plataforma.
"A partir de agora, vamos concentrar nossos esforços para oferecer a melhor experiência aos usuários na intermediação de entrega de itens de conveniência e mercado", disse a empresa no e-mail que enviou aos seus clientes, para comunicar a mudança na plataforma.
Molinari, porém, acredita que esse pode não ser o adeus definitivo do Uber Eats no segmento. "O Uber vai equilibrar seu negócio principal, mas terá toda estrutura no País. Além disso, ela continuará operando delivery de restaurantes fora do Brasil e aprendendo com isso. Isso significa que ela tem condições de voltar quando quiser. E isso poderá ocorrer até por meio de aquisição de rivais que conseguirem se posicionar melhor no mercado".
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