Como o jogo Animal Crossing, da Nintendo, virou um hit na quarentena

Ao colocar jogador no papel de administrador de um pequeno vilarejo, tendo de caçar e fazer tarefas ao ar livre, lançamento consegue compensar a vida em isolamento

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Por Kyle Buchanan

Hoje em dia, quando meus pais me ligam para saber quais são as novidades, não tenho nada a dizer. Moro sozinho e estou preso no meu apartamento há quase três semanas por conta do coronavírus. Segunda-feira é igual a quarta-feira que é igual a sábado. Mas, quando meu amigo Brian me manda uma mensagem de texto com as últimas fofocas, digo a ele que ontem, pouco antes da meia-noite, encontrei um fantasma na minha ilha e ele me deu um bidê.

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Esse tipo de conversa inusitada acontece o tempo todo em Animal Crossing: New Horizons, game alegre e divertido para Nintendo Switch que virou a sensação das redes na era do distanciamento social. A premissa é simples: seu objetivo é transformar uma ilhazinha de desenho animado num vilarejo movimentado. Não tem princesa sequestrada nem planetas em guerra, mas você pode ficar ao ar livre, o que é bem melhor.

Com tarefas nada arriscadas, tipo fazer amigos e decorar a casa, o Animal Crossing parece menos um jogo tradicional e mais um simulador de vida cotidiana. Lembra um pouco The Sims, a não ser pelo fato de que, nesta série de longa duração, você tem que ficar de olho em personagens mercuriais, que se enfurecem quando ignorados e até fazem xixi no chão só de pirraça. (Em The Sims, você também pode matar personagens. E você vai querer matar, acredite).

Nada é muito urgente em Animal Crossing, onde os objetivos são tranquilos e podem ser adiados indefinidamente. Você pode fazer mais quartos na sua casa depois de pagar suas dívidas com o barão imobiliário Tom Nook – um guaxinim magnata de camisa estampada. Mas, se você preferir passar a tarde batendo papo com o bando de animais antropomórficos da ilha, beleza.

Você é incentivado a entrar no jogo todos os dias, já que a ilha funciona em tempo real: três da tarde na vida real, três da tarde no jogo. E pode acontecer todo tipo de evento, dependendo da hora ou mesmo do dia da semana. Esse compromisso continuado era o motivo pelo qual eu tinha resistido às versões anteriores da franquia Animal Crossing. Na adolescência, preferia jogos mais curtos, que se encaixassem mais fácil na minha vida agitada.

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Mas agora que estamos todos presos dentro de casa por causa do coronavírus, o tempo escorre pelas mãos e está se espalhando no chão. Por que não passar meia hora todas as manhãs – bom, eu sempre digo que vai ser só meia hora e, de repente, escureceu – na companhia dos adoráveis personagens de desenho animado da minha ilha digital?

Jogo virou bálsamo em meio ao caos da vida real

Baixei Animal Crossing: New Horizons numa noite de sexta-feira e batizei minha ilha de Akbar, em homenagem ao bar da esquina que meus amigos e eu frequentávamos antes da quarentena. Um dos meus vizinhos na ilha, um gatinho chamado Rudy, me deu um presente: “Este chapéu de brim”, ele me disse, “é muito Akbar”. Como ele sabia?

Na ilha do autor do texto, tem visitantes e uma homenagem a Bong Joon-ho, diretor deParasita Foto: Kyle Buchanan/NYT

Nos dias seguintes, o jogo virou um bálsamo. Sempre que a imensa quantidade de notícias do mundo real me esmagava, eu fugia para Akbar, onde podia simplesmente catar conchas na praia, assistir a uma chuva de meteoros ou incentivar uma esquilo verde chamada Nibbles a correr atrás de seu sonho de se tornar uma estrela pop. Nos dias de hoje, é bom procurar pequenos prazeres onde quer que você possa encontrá-los. Animal Crossing está cheio deles, pois cada mínimo e precioso incidente serve como um pequeno alívio para a saúde mental.

Aos poucos, a ilha virou uma substituição digital para a minha vida real. O aplicativo de fotos do meu telefone estava cheio de capturas de tela do Animal Crossing – e não de eventos que eu tinha vivido de verdade. E, mesmo que meus amigos ainda não pudessem me encontrar no Akbar da esquina, eles podiam visitar minha ilha conectando seus Switches à internet. Comecei a me preocupar menos com o estado do meu apartamento – por que me dar ao trabalho de guardar os sapatos se ninguém vem me ver? – e me empolgava reorganizando a minha casa no videogame antes de convidar alguém para conhecer a minha ilha.

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‘Viagem no tempo’ dá (raro) controle sobre o futuro

Meu amigo me disse que, em vez de jogar no ritmo normal do jogo, onde os grandes eventos só acontecem quando você chega a um determinado dia, ele ficava alterando a hora e a data no software interno do Switch, pulando um dia, depois dois, depois muito mais, até que ele finalmente acumulou o suficiente para viver no mais absoluto luxo. 

Na comunidade Animal Crossing, essa estratégia controversa é chamada de “viagem no tempo” e, embora não seja tecnicamente ilegal, é como ouvir podcast em velocidade acelerada ou tomar um copo de Soylent (uma bebida da moda no Vale do Silício, que tem todas as vitaminas necessárias para o corpo humano, mas de gosto esquisito) no jantar: você recebe os mesmos nutrientes, mas cadê a diversão?

Na ilha do autor do texto, tem visitantes e uma homenagem a Bong Joon-ho, diretor deParasita Foto: Kyle Buchanan/NYT

Obviamente, entendi o impulso por trás dessa jogada: num momento em que ninguém sabe quanto tempo continuaremos em casa, quem não aproveitaria a chance de exercer um pouco de controle sobre o futuro? Mas é exatamente essa incerteza que me leva a jogar o Animal Crossing no seu próprio ritmo. Se o mundo real ainda vai piorar antes de melhorar, pelo menos preservo uma rota de fuga em miniatura para me ajudar a superar essa fase.

Portanto, as praias de Akbar continuam intocadas pelo progresso, minha cozinha ainda não tem geladeira e Nibbles ainda não é a estrela pop de seus sonhos. Isso me deixa ansioso? Nada. Agora tenho tempo. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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