Jair Bolsonaro, Celso Russomanno, Arthur do Val, Marina Helou, Guilherme Boulos, Kim Kataguiri, Alexandria Ocasio-Cortez… Não são poucos os nomes de políticos que têm ganhado destaque por ações relacionadas ao universo dos games. Em uma das mais recentes, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou uma redução de 10% no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para videogames, medida que foi tomada pelo segundo ano consecutivo.
O candidato a prefeito de São Paulo Celso Russomanno (Republicanos), por sua vez, chegou a defender em campanha a utilização de videogames em sala de aula. Concorrentes de Russomanno no pleito, Arthur do Val (Patriota), Marina Helou (Rede) e Guilherme Boulos (PSOL) também não ficaram parados, embora tenham optado por outra via. Todos participaram de lives recentes jogando Among Us e estão adotando ações, como a realização de desafios no TikTok e o uso de memes nas redes, na tentativa de dialogar principalmente com os chamados nativos digitais.
Nas partidas de Among Us transmitidas por Arthur, que despontou no YouTube com o canal Mamãe Falei, além de convidados como a candidata concorrente Marina Helou e até Danilo Gentili, um dos participantes foi o deputado federal Kim Kataguiri (Democratas-SP), que tem um canal na Twitch para a transmissão de partidas de diferentes games e até de debates. A plataforma de streaming da Amazon foi a mesma escolhida pela congressista americana Alexandria Ocasio-Cortez, conhecida como AOC, para fazer sua primeira e única live de games até o momento. Ou seja, deu para perceber que não são poucos os políticos que estão “investindo” no universo dos games. Mas a pergunta é: por quê?
Por que os políticos estão se aproximando do universo dos games?
Atrás apenas da música e do cinema, o setor dos games é considerado a terceira força do entretenimento e está superaquecido durante o isolamento social — se consolidando como uma interessante via para políticos que estão ou não em disputa eleitoral. Em meio a isso, é importante lembrar que “há diferenças e similaridades" nas investidas de políticos na área, explica o cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV Eaesp) Eduardo Grin.
Segundo ele, as ações adotadas pelos políticos refletem tentativas de criar uma aproximação com o público mais jovem, já que o mercado de games afeta uma faixa muito significativa do eleitorado que não só é formadora de opinião, como também dialoga com outros setores. “O interesse é igual. Seria ingênuo pensar que políticos que vivem de voto não fariam esforço para se aproximar desse público. A diferença é que Bolsonaro tem a caneta na mão”, explica o cientista político, que também atribui as medidas de Bolsonaro à relação do presidente com um de seus filhos.
“Ao reduzir o IPI para videogames, Bolsonaro reforça mais um apelo político eleitoral, quando ele mesmo, até poucos anos atrás, entendia que os games eram algo que deseducava, gerava violência, tirava os jovens da escola. Como Bolsonaro segue muito pelo que seus filhos lhe dão de conselho, neste momento, o ‘04’ (Renan Bolsonaro), que é um conhecedor do ambiente dos games, pode ser alguém que está estimulando o pai a adotar essas medidas”, explica. Para o cientista político, as medidas de corte de imposto também passam por uma questão cultural, já que o Brasil gasta mais de 4,5% de seu PIB em subsídios concedidos a diversos setores da economia.
Já as lives de games, que não têm exatamente um caráter institucional, visam a atrair mais público e ampliar o diálogo — o que pode ser útil especialmente em candidaturas como a de Guilherme Boulos. Segundo Grin, o PSOL tem uma grande base eleitoral formada por jovens. De acordo com a pesquisadora Camila Rocha de Oliveira, doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), a percepção é de que parece existir o reconhecimento por parte de certas lideranças de esquerda de que a comunidade gamer é importante e não deve ser estigmatizada como “reduto de direita” — rótulo que persiste ao longo do tempo.
Segundo Camila de Oliveira, a explicação para esse estigma é clara. “Muitos adultos jovens que hoje se dizem de direita no Brasil há dez anos ou quinze anos atrás frequentavam fóruns de gamers nacionais e internacionais. Neles, era possível falar de diversos assuntos com muita liberdade, por vezes até de forma violenta e fazendo uso de discursos de ódio, especialmente contra mulheres”, destaca a pesquisadora. Segundo ela, movimentos como esse ganharam força também pela possibilidade de utilizar pseudônimos em chats.
Com isso, o universo dos games online, do ponto de vista de estratégia política, passou a ser muito potente, já que revela “discursos 'subterrâneos' que podem ser decisivos” por permitirem o acesso ao que as pessoas pensam, mas não falam. “Em termos de potencial político, é possível dizer que os integrantes dessa comunidade podem ser extremamente ativos digitalmente no combate cultural e ideológico e também influenciarem no tipo de linguagem utilizada”, explica.
Para a doutora em ciência política, a aproximação de políticos com o universo dos games no Brasil, que se consolida como uma tendência, acompanha também um movimento dos Estados Unidos e de outros países — o que também é abordado em pesquisa da antropóloga Isabela Kalil, docente da Escola de Humanidades da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). No estudo Quem são e no que acreditam os eleitores de Bolsonaro, realizado em 2018, a pesquisadora agrupou 16 tipos de apoiadores, eleitores e potenciais eleitores de Jair Bolsonaro. Entre esses grupos, um núcleo que se consolida como uma importante frente do bolsonarismo é de “nerds, gamers, hackers e haters” — que está inserido no universo dos games e foi impulsionado por um acontecimento nos Estados Unidos.
Para explicar o Brasil de hoje, a antropóloga dá um passo atrás e destaca o #GamerGate, evento que ocorreu em 2014 e desencadeou uma série de ameaças de morte e estupro contra mulheres que trabalhavam na comunidade dos games americana. Segundo Kalil, o acontecimento serviu como uma “espécie de laboratório” da ‘alt right’ (direita alternativa) — dando espaço para atuações online de supremacistas brancos, misóginos, neonazistas, entre outros grupos mobilizados por discursos de ódio. “Essas figuras que estavam não só por trás, mas apoiando esse movimento, são figuras como Steve Bannon, que em 2016 passou a apoiar a campanha do Trump”, destaca a antropóloga. Para ela, a dinâmica do GamerGate funcionou como uma espécie de ímã para conseguir mobilizar uma série de atuações que, posteriormente, foram resvalar na política e em campanhas como a da vitória de Trump em 2016.
Como se dá a disputa nas comunidades e fóruns de games?
A disputa de forças na área não é algo estático. Para Isabela Kalil, ainda que haja uma presença importante de grupos de extrema direita no universo dos games, já que eles se mobilizaram primeiro no setor, o campo progressista tem tentado se aproximar dessas comunidades e criar linhas de diálogo. É um fenômeno similar ao que ocorre, em outra medida, na indústria do cinema, que vê uma demanda progressista crescente por filmes que dão mais espaço a personagens mulheres, negros, latinos, entre outros grupos subrepresentados.
Segundo a antropóloga, de forma ampla, todas as áreas do entretenimento viraram campos de disputa entre forças de diferentes espectros políticos — entre elas, está a indústria dos games. Um exemplo recente que ajuda a elucidar isso foi o lançamento do game The Last of Us Part II que, por ter uma mulher como protagonista, gerou discussões entre gamers do espectro da esquerda e da direita.
“Um desdobramento possível desse cenário seria a gente ver cada vez mais uma polarização no universo dos games, assim como tem em embates político-partidários. Teriam jogos e fóruns específicos entre posições que são mais conservadores e posições mais progressistas”, explica Kalil, que destaca o potencial que comunidades têm de se mobilizar em torno de valores em um primeiro momento e posteriormente até abraçar candidatos. Para ela, esse movimento ocorreu com Donald Trump nas eleições de 2016 e, em certa medida, também chegou ao Brasil, com o bolsonarismo.
Quais são as principais falácias ao falar das investidas de políticos no setor dos games?
Para Fabro Steibel, diretor executivo do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), há duas falácias importantes de serem combatidas quando o assunto é a aproximação de políticos com o universo dos games.
O primeiro ponto é que investir na indústria não se trata de algo fora da caixa, já que o setor de games é imenso e aumenta a geração de empregos, impulsiona a indústria criativa e leva a uma série de benefícios. De acordo com o diretor executivo, um fator que explica a grandeza do setor é o fato de que algumas das maiores campanhas de crowdsourcing, por exemplo, vêm de mobilizações do setor dos games, que também tem vários subnichos. “A Twitch conta com streamers que jogam games de diferentes portes e tem a ideia de influenciador ali dentro, tem outras plataformas que atraem públicos que gostam mais de jogos de tiro, tem plataformas que são maiores por conta de um jogo ou de um país. É tudo muito gasto e varia muito”, destaca.
A segunda falácia é que, de acordo com Steibel, investir na comunicação com a área dos games não deve ser visto apenas como uma aproximação com o público jovem, já que, por ser enorme, esse universo reúne diferentes faixas etárias. Segundo o executivo, uma importante parcela de jogadores de games está na faixa dos 35 aos 45 anos, o que permite aos políticos dialogarem também com esse público e amplificarem seus discursos nas redes.
Também por conta disso, Steibel entende que a comunidade de gamers não está relegada a apenas um espectro político, mas a várias vertentes — fator que ajuda a explicar candidatos tão diferentes, como Arthur do Val, Marina Helou e Guilherme Boulos, estarem participando de lives do mesmo game. “É um retrato da sociedade”, conclui Steibel.
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