Os aplicativos de carona paga se popularizaram nos últimos anos por conseguir uma proeza impensável: convencer as pessoas a entrarem no carro de um completo desconhecido, que não é motorista profissional. Ao intermediar a relação entre motoristas e passageiros, os apps ganharam a “confiança” dos usuários. E têm faturado alto: o Uber, por exemplo, alcançou receita de US$ 2,9 bilhões no último trimestre de 2016. A empresa tem valor de mercado de US$ 69 bilhões.
O negócio é sólido, mas não está imune à uma revolução tecnológica que promete transformar as relações entre pessoas e empresas na internet. Chamada de blockchain, a tecnologia é denominada por especialistas de “protocolo da confiança”, pois faz uso de uma rede global de dispositivos para validar e registrar todo tipo de transação de forma rápida e segura. Na prática, ela elimina a necessidade de um intermediário, um terceiro que valide uma transação.
“É como uma grande planilha em branco que é processada em milhões de computadores ao redor do mundo”, disse o escritor canadense Don Tapscott em entrevista ao Estado, ao lançar o livro Blockchain Revolution (Editora Senai-SP) no Brasil. “Ela permite guardar, vender, gerenciar e proteger bens digitais.”
Embora seja objeto de pesquisa há mais de duas décadas, a blockchain só se tornou relevante com o lançamento da moeda virtual Bitcoin, em 2009. Foi a primeira vez na história que as pessoas puderam fazer transações com dinheiro pela web sem passar por intermediários, como bancos. Ver uma aplicação prática da blockchain aguçou a imaginação de desenvolvedores.
Protótipo. Após um longo período de desconfiança, os bancos começaram a tentar entender o papel da tecnologia no sistema financeiro. Em 2015, diversas instituições globais se juntaram para criar o R3, um consórcio global para desenvolver um sistema baseado na blockchain, fechado para bancos.
No Brasil, bancos pesquisam a blockchain de forma independente há alguns anos. Em agosto do ano passado, porém, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) criou um grupo de estudo sobre blockchain que inclui Bradesco, Banco do Brasil, Caixa, Itaú e Santander, entre outros. A bolsa de valores B3 e o Banco Central participam.
De forma colaborativa, eles desenvolveram o primeiro protótipo de uma blockchain para transações financeiras: numa rede distribuída, que só os bancos e o Banco Central podem acessar, eles compartilham dados fictícios de clientes e testam aplicações. “A descentralização e o registro imutável de informações podem permitir a criação de novos modelos de negócio”, diz o coordenador do grupo de trabalho de blockchain da Febraban, Adílson Fernandes da Conceição.
O protótipo será apresentado publicamente pela primeira vez na próxima quinta-feira, 27, em São Paulo. Uma segunda versão, com novos recursos, está prevista para o final de maio.
Certidão digital. Enquanto os bancos avançam com cautela, inúmeros experimentos com blockchain ocorrem em outros segmentos. Há quem aposte que a tecnologia está no centro do “cartório do futuro”. É o caso da startup OriginalMy, fundada no início de 2015. Ela registra contratos e criações originais na blockchain, assim como registra eventos – de nascimentos a casamentos.
“Em vez de ir a um cartório para legitimar um acordo entre as partes”, diz o professor da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), Alberto Luiz Albertin, “podemos usar a tecnologia como intermediária para criar um contrato inviolável.”
A startup A Star lançou recentemente um serviço de registro de diplomas. Para isso, uma instituição de ensino precisa enviar o certificado, que é assinado digitalmente e ganha um identificador único. “O empregador consegue verificar na blockchain se aquele documento é original”, explica o desenvolvedor de negócios da A Star e pesquisador do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio), Gabriel Aleixo.
A blockchain também tem sido usada para facilitar a participação política. No Rio, o ITS, que é uma associação sem fins lucrativos, lançou no fim de março o aplicativo Mudamos, uma espécie de abaixo-assinado digital. O objetivo é coletar assinaturas para projetos de lei de iniciativa popular.
A diferença do Mudamos em relação a outras plataformas, está no uso de criptografia e de blockchain para garantir a validade jurídica das assinaturas. “É como se a gente registrasse uma lista feita à mão todos os dias na blockchain”, explica o coordenador de projetos do ITS-Rio, Marco Konopacki. “Como a lista é imutável, ninguém pode dizer que houve fraude.” Até agora, o Mudamos já foi baixado mais de 230 mil vezes no iOS e no Android.
Desafios. As possibilidades da blockchain são inúmeras – os desafios também. O primeiro, e talvez o maior, está na falta de conhecimento. Além de dificultar o acesso de usuários domésticos aos serviços, o desconhecimento pode levar a tentativas drásticas de regulação, o que poderia frear a inovação.
Ainda assim, para os especialistas ouvidos pelo Estado, a blockchain aponta para um caminho sem volta. “Há uma demanda por descentralização em cada vez mais setores da sociedade”, diz Aleixo. “Esses princípios vão guiar a criação de serviços mais diretos, baratos e democráticos.”
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