Computadores quânticos, máquinas ultra poderosas que prometem ser capazes de solucionar alguns dos mais complexos problemas da humanidade, foram por muitos anos uma distante miragem enterrada nos laboratórios de universidades e empresas. Mas, nos últimos meses, uma enxurrada de anúncios indica que a tecnologia não só é real, como virou o centro de uma corrida disputada, que envolve gigantes da tecnologia e superpotências globais.
Avanços recentes de Google, Amazon e Microsoft, além de China Telecom Quantum Group (CTQG), indicam um alvo claro. “O santo graal da computação quântica é o controle de erros das máquinas”, afirma Ivan Oliveira, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Sem resolver esse desafio, é impossível criar computadores quânticos capazes de solucionar problemas complexos, como a criação de novos materiais, o desenvolvimento de novos remédios e a solução de operações logísticas e financeiras.

Não é uma tarefa qualquer. Na computação quântica, as informações são armazenadas e processadas por qubits, ou bits quânticos. Ao contrário da computação clássica de PCs e smartphones, cujo bit pode ser processado por 0 ou por 1, o qubit expressa o 0 e o 1 ao mesmo tempo por um fenômeno chamado superposição. Claro, o funcionamento do qubit segue regras completamente diferentes da computação clássica.
Em um computador clássico, o bit é um sinal elétrico, que atravessa um transistor, e flutuações nesse sinal podem levar ao erro, que são corrigidos por códigos específicos - é um problema solucionado desde a década de 1950. Na computação quântica, as propriedades dos qubits são o resultado do comportamento coletivo de átomos, elétrons, fótons ou outras partículas subatômicas dentro de materiais supercondutores, que levam a estados da matéria que não existem classicamente. “Nesses estados coletivos, eu não consigo apontar para elétrons individualmente. Eu só consigo falar do conjunto, que vai apresentar as características que a gente precisa”, explica Bárbara Amaral, pesquisadora de informação quântica do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.
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“Toda a magia da computação quântica está associada à manipulação desses estados. Só que eles são muito frágeis, o que destrói a superposição e leva ao erro”, diz Oliveira. Diversos caminhos apontam para o erro — sempre relacionados à interação das partículas com o meio ambiente, como variação de temperatura, vibrações, flutuações de energia e ação de micro-ondas.
Pesquisadores tratam do problema por diferentes estratégias. Existe a mitigação de erros, que realiza o tratamento dos dados antes e depois do processamento. Há ainda cuidados na calibração dos equipamentos e na escolha dos materiais supercondutores. Mas a grande chave da área reside na correção de erros, que combina hardware e algoritmos para detectar e corrigir falhas à medida que acontecem — é uma abordagem que parte do pressuposto de que o erro inevitavelmente vai ocorrer dentro dos sistemas.
Nesse sentido, o Google deu um passo importante ao revelar em dezembro o chip Willow, que tem 105 qubits. Mais do que celebrar o barulho que a companhia fez em torno da capacidade do processador de solucionar em cinco minutos um único problema que um supercomputador clássico demoraria 10 septilhões de anos (ou 1.000.000.000.000.000.000.000.000 anos), chamou a atenção da área o outro avanço atingido pela empresa: implementar códigos de correção de erro em tempo real, que permite reduzir exponencialmente a taxa de erros à medida que o número de qubits aumenta. Esse fenômeno é chamado como below threshold.
O santo graal da computação quântica é o controle de erros das máquinas
Ivan Oliveira, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas
Para atingir o resultado, a companhia usou uma estratégia chamada de código de superfície, que significa agrupar diversos qubits físicos, que trabalham em conjunto para dissipar os erros do sistema. A união desses qubits dá origem a uma unidade de qubit lógico, que trabalha com uma espécie de redundância para preservar o funcionamento do processador. Com esse método, o Google conseguiu preservar o estado quântico do Willow por uma hora, uma marca que parece pequena, mas que é bastante extensa nessa área.
É um caminho parecido com o escolhido pela Amazon, que, no final de fevereiro, apresentou o processador Ocelet, seu primeiro chip quântico. Não é coincidência: a gigante fundada por Jeff Bezos conta com em seu projeto quântico com a liderança do físico brasileiro Fernando Brandão, que deixou o Google no final de 2019, onde ajudou a desenvolver o chip Sycamore, o primeiro a atingir supremacia quântica, quando uma máquina quântica soluciona um problema impossível de ser resolvido por um supercomputador clássico.
“A gente desenvolveu um novo tipo de qubit que só é suscetível a um dos dois tipos de erros que normalmente a gente tem no computador quântico”, contou Brandão ao Estadão. O novo qubit citado por ele se chama qubit gato, que, ao espalhar o estado quântico por múltiplos fótons, apresenta alta resistência ao erro conhecido como bit flip, um problema que também afeta máquinas clássicas - a taxa de correção de erro é de mais de 90%. Contudo, o bit flip aumenta os erros de fase, que precisam ser detectados por outros qubits no sistema chamados de transmons.
Segundo a Amazon, o método permite reduzir em até 90% os qubits necessários para a correção de erros em um chip. “Acreditamos que a arquitetura do Ocelot, com sua eficiente abordagem de correção de erros em termos de hardware, nos posiciona bem para a próxima fase da computação quântica: aprender como ganhar escala”, disse Brandão no anúncio do processador.

Microsoft faz barulho, mas levanta dúvidas
A estratégia da Microsoft para lidar com os erros é ousada. Ao anunciar no meio de fevereiro seu primeiro chip quântico, o Majorana-1, a companhia afirmou que seu equipamento se mantém livre de erros ao supostamente utilizar qubits originados a partir de uma quasipartícula chamada férmions de majorana.
Localizadas nas pontas de nanofios, essas quasipartículas seriam imunes a distúrbios do meio ambiente, mantendo o estado quântico do equipamento. A resistência a erros faz esses qubits serem batizados de qubits topológicos, um termo emprestado da matemática que indica materiais que se deformam, mas que mantém suas propriedades. Seria uma descoberta gigantesca para toda a área, pois em décadas de estudos pesquisadores nunca haviam detectado majoranas. Logo, a companhia fundada por Bill Gates é a única do mundo a apostar nesse caminho.
A comunidade científica, porém, não recebeu bem o suposto avanço. “A Microsoft tem um histórico ruim na área. Eles já tiveram um artigo removido no qual afirmavam ter resultados topológicos, então há desconfiança”, explica Bruna Shinohara, pesquisadora da empresa canadense CMC Microsystems. A brasileira destaca alguns problemas com o artigo do Majorana-1. “Eles exploraram bem pouco falsos positivos para a presença de majoranas”, diz ela, que se especializou na detecção de ruído na busca pelas quasipartículas.
A Microsoft fez uma prova muito fraca de topologia, e pode ser que eles tenham que corrigir o artigo novamente. Sem topologia, eles não têm nada
Bruna Shinohara, pesquisadora da empresa canadense CMC Microsystems
Não foi só ela. Enquanto a Microsoft afirmava ter detectado majoranas e contruído oito qubits topológicos, o artigo científico publicado na revista Nature que deveria provar as afirmações trazia a seguinte mensagem dos editores: “A equipe editorial gostaria de ressaltar que os resultados deste manuscrito não representam evidência da presença de modos zero de majorana nos dispositivos relatados. O trabalho foi publicado para apresentar uma arquitetura de dispositivo que pode permitir experimentos de fusão usando futuros modos zero de majorana”.
“A Microsoft fez uma prova muito fraca de topologia, e pode ser que eles tenham que corrigir o artigo novamente. Sem topologia, eles não têm nada”, diz Bruna.
O ano da computação quântica
Embora as disputas pareçam estar ocorrendo em um ambiente mais próximo da academia, a correção de erros é um sintoma de que a disputa entre gigantes está bastante aquecida — tanto que as Nações Unidas declaram 2025 como o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas. Os números ajudam a entender.
Segundo a Qureca, que monitora iniciativas quânticas no mundo, devem ser investidos globalmente US$ 44 bilhões na tecnologia em 2025 — a projeção é que esse seja um mercado de US$ 106 bilhões em 2040. Já a consultoria McKinsey, estima que quatro setores (indústria química, ciência, finanças e mobilidade) podem ter um acréscimo de US$ 2 trilhões até 2035 como resultado dessas tecnologias. As gigantes da tecnologia esfregam as mãos para conectar essas máquinas a seus serviços em nuvem.
A IBM, por exemplo, planeja anunciar em 2026 um computador quântico capaz de resolver problemas reais. “A gente é uma empresa B2B e quer resolver problemas dos negócios”, afirma Ana Paula Appel, especialista em computação quântica da companhia. Recentemente, a companhia mudou sua abordagem de construir máquinas com muitos qubits para focar em qubits de melhor qualidade, com menos falhas. Agora a companhia trabalha com três chips de 150 qubits interligados.”Estamos trabalhando com mitigação de erro, que é detectar um erro para evitá-lo. A correção de erro está prevista para 2029″, diz ela.

Assim, algumas das principais potências do mundo já começam a incluir tecnologia quântica em suas estratégias de estado. Em janeiro deste ano, o governo americano publicou um relatório para guiar os interesses quânticos do país — Comissão sobre Liderança Quântica dos adverte que os americanos não podem esperar por um “momento Sputnik” para catalisar o investimento na área.
Entre os principais pontos reforçados pelo documento estão a necessidade de garantir acesso de matéria-prima para as tecnologias quânticas, o que implica em garantir a exploração de minério em outros países. Também diz que os EUA e seus aliados devem controlar a exportação de tecnologia para nações adversárias, e afirma que o país deve atrair mão de obra estrangeira especializada.
Será uma disputa intensa. Em 2021, a China declarou que tecnologia quântica era uma prioridade do seu 14º Plano Quinquenal econômico, que se completa neste ano.
Ao lançar em dezembro o computador Tianyan-504, com 500 qubits, o país deu mais um passo para atingir sua meta de liderar o setor até 2030, que já conta com US$ 15,3 bilhões em investimentos. Outras nações com planos quânticos são a Rússia, a União Europeia, Japão, Catar e Singapura.
Resta saber quem vai saber lidar melhor com os erros de suas máquinas.