Nos últimos anos, os brasileiros se acostumaram com algo que parecia impensável no início da década: ter uma conta bancária totalmente digital, sem agência nem gerente para tomar cafezinho. Nomes como Nubank e Neon tornaram natural a ideia de controlar suas finanças na palma da mão, pelo celular. Agora, uma série de novas startups está de olho em como trazer a revolução dos bancos digitais para o mundo das pessoas jurídicas. Fundadas há no máximo três anos, elas apostam em serviços customizados para tipos diferentes de empresas, tentando ao mesmo tempo ser a primeira conta de muitos empreendedores e retirar clientes dos bancos tradicionais.
Além de se inspirarem na revolução na pessoa física, essas empresas também olham para exemplos no mercado do exterior – o mais conhecido deles é a Brex, fundada por dois brasileiros no Vale do Silício e que se tornou “o banco das startups”. O contexto local também ajuda, com regulamentações do Banco Central favorecendo a competição e a inovação, com a chegada de tecnologias como as transferências instantâneas (Pix) e o open banking, com troca de dados livre entre as instituições financeiras.
Dentro das novas empresas, há veteranos do mercado: é o caso da Linker, fundada por dois ex-funcionários da Neon, Daniel Benevides e Ingrid Barth, e um ex-Itaú, David Mourão. O foco da empresa está em atender as pequenas e médias empresas, uma fatia que, segundo o executivo, está negligenciada pelos bancos. Para se diferenciar, a startup aposta em integrações e parcerias – a conta digital da empresa permite que o empresário conecte as informações financeiras com sistemas de contabilidade online, gestão de clientes e de pagamento de funcionários, por exemplo.
Para fazer isso, a empresa lança mão de APIs – plataformas de programação que conectam seu sistema com o dos parceiros de maneira rápida, algo que muitos bancos tradicionais ainda não fazem.“É uma forma de dar velocidade e reduzir a fricção. Em vez de ficar na fila do banco, ele consegue focar no negócio dele”, diz David Mourão, CEO da empresa. Entre as parcerias, a empresa fornece créditos da Amazon para quem precisa de computação na nuvem ou descontos com a Conta Azul para quem precisa de contador. “Nosso cartão ainda não tem um sistema de milhagens, mas já temos uma série de descontos e serviços exclusivos”, afirma.
A inspiração dos bancos digitais aparece também na transparência com o usuário: em vez de um pacote de serviços, a Linker oferece conta gratuita e cobra o usuário pelo que ele usar – uma emissão de boleto ou uma transferência TED custam R$ 2, por exemplo. Além disso, a empresa – que usa o Banco Votorantim como parceiro de infraestrutura bancária – também fatura com comissões para processar pagamentos feitos com a conta e o cartão, algo comum no mercado financeiro.
Segunda vez
Não é só a Linker que tem gente experiente no ramo das fintechs. Fundada em 2018, a Cora tem como cofundadores Igor Senra e Leonardo Mendes, criadores do sistema de pagamentos Moip, comprado pela alemã Wirecard em 2016 por R$ 165 milhões. Além da experiência, os dois começaram a nova empresa com algo diferente: propósito. “Na Moip, a gente começou querendo só copiar o PayPal. No meio da jornada descobrimos que queríamos ajudar os empreendedores brasileiros”, conta Senra. “Tentamos criar a ideia da Cora depois da venda, mas a empresa decidiu tomar outros rumos. Aí saímos e começamos de novo.”
A ideia atraiu investidores de peso: no fim de 2019, a startup levantou US$ 10 mi em rodada liderada pelos fundos Kaszek e Ribbit. Segundo Senra, a meta da Cora é atender as empresas que se enquadram dentro do regime do Simples, com faturamento máximo de R$ 4,8 milhões. Quem faz uma conta com a fintech hoje tem acesso a uma conta gratuita, bem como transferências e boletos livres de tarifas e um cartão de débito.
A empresa também tem um sistema de cobrança automatizado, com envios de notificações a quem recebe um boleto para pagamento. Ao todo, já são 20 mil clientes, que também incluem microempreendedores individuais e empresas de maior porte. “Colocamos o serviço na rua em outubro e estamos crescendo 12% por semana. Devemos bater 40 mil contas até o final do ano”, diz o presidente executivo da Cora.
Para os próximos meses, a empresa testa serviços de cartão de crédito e de empréstimos, que lhe ajudarão a faturar – assim como a Linker, a startup também fatura com o processamento de operações que passam por sua plataforma. “Estamos construindo uma relação: se a gente entende quanto a empresa fatura, como ela movimenta, fica mais fácil para dar um crédito certo para ela”, afirma o executivo, que comanda uma equipe de 65 pessoas. Até o final do ano, serão 80.
De ferro
Quem também compartilha dessa visão é Rafael Stark, da Stark Bank – nome inspirado tanto em Tony Stark, o Homem de Ferro da Marvel, quanto em Game of Thrones. “É um nome ‘artístico’, não de família. Junta dinheiro, tecnologia e honradez, é tudo que um banco precisa”, diz Stark, que ganhou o apelido após a confusão de um investidor. Depois de um tempo, eledecidiu adotar o sobrenome. “Vou colocar no RG!”, afirma.
Ao contrário de Linker e Cora, a ideia da fintech é atender grandes empresas, que precisam realizar muitas operações ao mesmo tempo – o que atraiu nomes como Rappi, Buser e Loft para serem clientes.“Para os clientes que são de tecnologia, nós trabalhamos com APIs e ligamos com o time de tecnologias deles; para quem não é, fazemos até planilha do Excel integrada com as operações de pagamento”, diz Stark. “Fazemos o que for preciso para que o serviço financeiro funcione que nem um Lego.”
Hoje, a startup contabiliza 25 pessoas, mas o número deve triplicar até o meio de 2021 para dar suporte a novas ofertas – um exemplo é um cartão corporativo, que será feito em parceria com a Mastercard. “Queremos acabar com a confusão entre o cartão de pessoa física e o de pessoa jurídica.”
Entre os investidores da empresa, que já soma 400 clientes, há nomes de peso: o Iporanga Ventures e a aceleradora do Vale do Silício Y Combinator, de nomes como Rappi, Dropbox e Airbnb. O sistema de faturamento é simples: a conta é gratuita e a empresa paga à Stark Bank de acordo com o que usa – quem faz grandes volumes de transações pode entrar numa negociação à parte. Para Stark (o executivo), mais do que crescer em clientes (ele projeta que serão no máximo 1 mil até o fim de 2021), a empresa precisa crescer em serviços, mas com foco.
Posição
As novas empresas, porém, não disputam espaço apenas com os bancões, mas também com os bancos digitais que já atendem bem as pessoas físicas. O Nubank, por exemplo, tem 400 mil clientes de sua conta para pessoas jurídicas, voltada para donos de pequenos negócios, microempreendedores individuais (MEIs) e autônomos que sejam sócios únicos e também tenham cadastro pessoal na startup.
Já o Neon também tem um serviço de conta PJ aberto a todos os tipos de empresa, mas seu foco está mesmo nos MEI – especialmente desde meados de 2019, quando adquiriu a startup MEI Fácil, dona de um sistema que ajuda o microempreendedor a pagar contas, emitir boletos e organizar sua vida empresarial. Somando o serviço de conta e as vantagens da MEI Fácil, a empresa diz ter contato com cerca de 20% dos 11 milhões de MEIs existentes no país.
“Esse é um mercado muito mal atendido, como o da pessoa física era, e ainda pouco bancarizado. O espaço é gigante e cabe muita gente. Se todo mundo for bem atendido, o mercado fica mais saudável”, diz Marcelo de Moraes, fundador da MEI Fácil e diretor da área de pessoas jurídicas da Neon. Para ele, os bancos tradicionais nunca conseguiram rentabilizar bem o segmento porque ele demanda escala que vai além da capacidade física das agências. “Uma oferta digital torna o serviço barato para o cliente e viável para nós.”
Para os novatos, há uma explicação para o foco dos “incumbentes digitais”: uma conta para um MEI é muito semelhante à de uma pessoa física. “É quase como só virar a chavinha, algo mais fácil do que construir uma solução para empresas maiores”, diz Stark. No entanto, a geração de fintechs para o mercado corporativo não vê Neon, Nubank e outros membros da mesma geração como concorrentes. “Há espaço para todo mundo melhorar os serviços para as pequenas empresas, que movem a economia do País”, diz Igor Senra, da Cora.
E nem mesmo a movimentação dos bancos rumo a uma transformação digital, tentando ganhar agilidade, preocupa os novatos. “A conta dos bancões tem hoje 200, 300 produtos, mas não foca no que o usuário precisa. Eles podem tentar ser ágeis, mas ainda são como um transatlântico tentando sair da Baía de Guanabara: até rola, mas demora para sair”, brinca David Mourão, presidente executivo da Linker. “Já nós somos uma lanchinha.”
Para vencer no mercado, porém, as fintechs da nova geração vão precisar provar que tem serviços robustos e que são capazes de cuidar bem do dinheiro dos empresários em meio a um período complicado – que envolve um repique nos casos do coronavírus e uma crise econômica forte, dois fatores que afetam a vida das companhias de qualquer tamanho. Mas a visão atual, apesar de tudo, é de otimismo. “Por maior que seja a crise, estamos animados: a digitalização está acelerada e as pessoas precisam cada vez mais de um serviço barato e menos burocrático”, diz Senra, da Cora. “Na crise, ninguém vai querer jogar dinheiro fora.”
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