O governo Biden anunciou nesta segunda, 13, novas regras sobre o acesso de chips de computador e tecnologias para o desenvolvimento de inteligência artificial (IA). As restrições têm o objetivo de desacelerar o avanço da China e aumentar o domínio americano sobre o setor. No entanto, especialistas avaliam que a medida pode também prejudicar as iniciativas brasileiras na área.
A nova política impõe cotas para a maioria dos países do mundo sobre as vendas de GPUs, os chips essenciais para o desenvolvimento de grandes modelos de IA. Ela também impede que as empresas americanas compartilhem detalhes técnicos dos modelos de IA mais avançados com exceção de alguns aliados próximos dos EUA.
As regras classificam os países do mundo em três níveis. Para o primeiro deles, não há restrições de acesso a GPUs e modelos de IA. Nele, estão 18 aliados próximos dos EUA, como o Reino Unido, o Japão, a maior parte da Europa, Austrália e Taiwan. Já para o grupo três, as exportações de GPUs e algoritmos de ponta são totalmente proibidas. Neste grupo estão China, Rússia, Irã e Venezuela.
O restante do mundo, incluindo o Brasil, a Índia e alguns membros da Otan, como a Polônia, se enquadra no grupo dois, uma categoria sujeita a controles intermediários de acesso à tecnologia. As cotas impedem que as empresas desses países importem mais de 1,7 mil GPUs de ponta por ano. O objetivo é permitir a maioria dos projetos de IA, mas impedir a conclusão de grandes centros de dados, necessários para desenvolver novos modelos de IA.
Além disso, as empresas americanas terão que obter aprovação do governo dos EUA para construir grandes data centers em países sujeitos aos controles intermediários. E as empresas estrangeiras terão que solicitar a permissão dos EUA para esses projetos sob a condição de requisitos rigorosos de segurança e auditoria. Tudo isso deve dificultar o desenvolvimento da tecnologia no Brasil.
“Vai dificultar bastante a criação de IA brasileira. Para desenvolver grandes modelos de linguagem são necessárias três etapas. A mais cara delas é o pré-treino, cujo custo é na casa dos milhões de dólares. Todos os modelos desenvolvidos no Brasil são derivados desses pré-treinos. Com as novas regras, a gente teria que pedir autorização do governo americano para usar uma aplicação dessas. Isso torna o processo burocrático e nos tira a agilidade em inovação. Tempo em inovação é muito importante”, explica Anderson Soares, coordenador do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG).
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Caberá ao governo Trump decidir se manterá as novas regras, que passam a valer em 120 dias. No domingo, funcionários do governo Biden disseram que estavam em consulta com o novo governo sobre as regras. Assim, não é possível saber o exato processo de aprovação que pesquisadores e empresas brasileiras terão que percorrer, o que minimiza impactos no curto prazo. Mas, no médio prazo, há incerteza entre os especialistas nacionais. A UFG comprou recentemente seis unidades da Blackwell 200, GPU mais recente e poderosa da Nvidia - o investimento foi de cerca de R$ 30 milhões. “É a primeira vez que o Brasil compra um equipamento do tipo logo no lançamento. Normalmente, o País espera dois ou três anos. Não sabemos se isso será possível novamente”, diz Soares.
Ainda assim, os equipamentos recém comprados só conseguem realizar o treino de modelos de IA pequenos, com no máximo 20 bilhões de parâmetros (o que já resultaria em perda de qualidade). O GPT-3.5, que foi deixado de lado pela OpenAI no ChatGPT, tem 175 bilhões de parâmetros. Para modelos maiores, o investimento deveria ser na casa dos R$ 300 milhões, estima Soares - e mesmo assim, já existe fila para o recebimento dos componentes. A UFG já pagou, mas ainda não recebeu suas GPUs.
“Precisamos ter um parque nacional de computação que permite a gente treinar e disponibilizar no nossas IAs no Brasil, ainda mais com futuro protecionista que se projeta no governo Trump. Além disso, as disputas entre governos e Big Techs devem se intensificar, então precisamos ter IAs nacionais e computação nacional”, afirma Rodrigo Nogueira, fundador da startup Maritaca AI. O laboratório de Campinas (SP) construiu o Sabiá, um dos únicos LLMs brasileiros, a partir de um ajuste fino do Llama, o modelo de código aberto da Meta. Mas ele tem dúvidas sobre o futuro: “Não podemos ficar dependentes das dinâmicas entre governos internacionais”, diz ele.
Os governos dos EUA e da China afirmaram que a IA será fundamental para a futura disputa militar e econômica entre as duas superpotências. Alguns especialistas militares dos EUA argumentam que o país deve considerar a adoção de qualquer política que possa impedir as tentativas de seu principal rival geopolítico de promover a IA. Mas isso se espalhou para todos os países das duas nações.
O governo Biden admite que a China conseguiu contornar as sanções dos EUA com o objetivo de impedir seu desenvolvimento de IA, em parte adquirindo chips e outras tecnologias americanas indiretamente, por meio de outros países.
“Faço a seguinte leitura dos três grupos. Estamos na faixa dois, que não aliado e nem inimigo. É como se os EUA perguntassem de que lado esses países querem estar na disputa, o que poderia resultar em menos ou mais restrições, dependendo da resposta”, diz Nogueira.
Membros do governo brasileiro avaliam que um das formas de contornar as restrições dos EUA é desenvolver modelos e conjuntos de dados no âmbito dos Brics, além de parcerias com países como Espanha e Portugal, mas a posição pode colocar armadilhas no caminho nacional. O Brasil pode ter ficado no grupo dois justamente pelo seu potencial de desenvolver modelos de IA - já que somos um país que gera muitos dados - como também de formar parcerias com rivais claros dos americanos, como a China.
Segundo o New York Times, as novas regras outros objetivos: fazer com que os países aliados sejam o local escolhido pelas empresas para construir os maiores data centers do mundo, em um esforço para manter os modelos de IA mais avançados dentro das fronteiras dos Estados Unidos e de seus parceiros. No ano passado, a Microsoft anunciou que vai investir R$ 14,7 bilhões em nuvem e IA no Brasil ao longo de três anos.
As fabricantes de chips não gostaram das limitações, afirmando que elas podem prejudicar tipos de computação inócuos ou até mesmo benéficos, irritar os aliados dos EUA e, em última análise, levar os compradores globais a comprar produtos não americanos, como os fabricados na China.
Em um comunicado, Ned Finkle, vice-presidente de assuntos governamentais da Nvidia, chamou a regra de “sem precedentes e equivocada” e disse que ela “ameaça inviabilizar a inovação e o crescimento econômico em todo o mundo”.
Por outro lado, a decisão pode beneficiar as Big Techs, como Google, Amazon e Microsoft. Sem os chips necessários, pesquisadores, startups e empresas brasileiras podem ser obrigados a recorrer a serviços em nuvem das gigantes americanas para ter conseguirem desenvolver seus modelos.
As novas regras estabelecem um sistema no qual as empresas que operam data centers podem solicitar credenciamentos especiais do governo. Essas empresas poderão comercializar chips de IA mais livremente em todo o mundo. Em troca, terão que concordar em manter 75% do total de sua capacidade de computação de IA nos EUA ou em países aliados, e em não concentrar mais de 7% de sua capacidade de computação em qualquer outra nação.
O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, lançado em agosto do ano passado, previa até 2028 o investimento de R$ 250 milhões para a expansão e modernização a capacidade computacional para IA no País e outros R$ 765 milhões em parcerias internacionais, desenvolvimento de aceleradores e construção de dois racks completos de supercomputadores. Com as novas regras americanas, porém, o acesso a hardware crítico pode afetar os prazos e resultados finais das metas.
“As novas leis americanas são um tapa na cara da lentidão do Brasil para tornar operacional o nosso de IA. Decisões que deveriam levar meses, levam anos. Falar que vamos reagir já me parece algo distante. Precisamos agora reduzir a distância”, diz Soares. / COM WASHINGTON POST E NYT