Quando as políticas de isolamento social começaram a ser implementadas no Brasil por conta da pandemia do coronavírus, muita gente se apressou em apontar o iFood como um dos “campeões” do momento. Afinal, com restaurantes fechados, a saída para muita gente seria pedir comida em casa. Mas Fabrício Bloisi, presidente executivo da startup de entrega de refeições, está longe de querer cantar vitória. “Tenho sonhos grandes, mas nos últimos 30 dias eu não tenho falado deles. O foco é na segurança. Podemos tomar decisões erradas se quisermos acelerar na crise”, diz o executivo com exclusividade ao Estado.
Desde o começo da segunda quinzena de março, quando o iFood começou a implementar medidas como fundos de auxílio e distribuição de álcool gel e máscaras, Bloisi tem vivido dias intensos. “Não tenho nem dormido direito. Nós executamos um plano para três meses em três dias”, conta.
O que não quer dizer que a plataforma não tenha crescido: entre fevereiro e março, houve alta de 22%, embora a empresa não revele números absolutos. O “ecossistema iFood” também cresceu: foram 51 mil novos entregadores no mês passado e 18 mil novos restaurantes. Já o número de pedidos por itens de supermercado, serviço que a empresa começou a fazer em 2019, dobrou entre fevereiro e março. Hoje, cerca de 600 estabelecimentos, em 127 cidades do País, têm parcerias com o iFood. A meta, segundo a empresa, é chegar a 1 mil no final deste semestre, em 200 municípios.
O crescimento, porém, não veio sem polêmicas – na Justiça e nas redes sociais. Na entrevista a seguir, Bloisi fala sobre como foi o último mês do iFood e disserta sobre o futuro. “Vai haver uma revolução de hábitos e o iFood tem potencial, mas isso não vai acontecer por conta da pandemia”, afirma.
O iFood começou a tomar medidas contra o coronavírus há pouco mais de um mês. Que balanço o sr. faz desse período?
Foi um período muito doido. Nunca houve tantas decisões rápidas. Eu não tô nem dormindo direito, é uma experiência de vida. Algumas semanas antes do coronavírus chegar no Brasil, tivemos reuniões com os nossos sócios para planejar cenários de piora da situação, que seriam executados em três meses. Nós executamos em três dias. Cerca de 90% da empresa foi para home office em um dia só. Conseguimos implementar entrega sem contato e o pagamento online cresceu muito em poucos dias. Já repassamos R$ 15 milhões de um fundo de auxílio de R$ 50 milhões para os restaurantes, antecipamos pagamentos para 98% dos estabelecimentos. Distribuímos álcool gel para 60 mil entregadores, queremos chegar a 120 mil em breve. Também passamos a distribuir máscaras nessa semana. Foi difícil comprar álcool gel e máscara, porque a prioridade era dos hospitais. É algo difícil de se organizar, porque estamos em mil cidades. Tivemos até que tirar algumas promoções do ar, porque isso estava gerando aglomerações dos motoboys para retirar os pedidos. E paramos os planos que a gente tinha de expansão: a prioridade agora é servir.
No ano passado, vocês lançaram um serviço de entrega de mercado. Como ele está nesta crise?
Começamos há dez meses e era algo bem pequeno. No último mês, a demanda aumentou muito e estamos expandindo o mais rápido o possível. Vamos passar a aceitar entregadores de carros. As pessoas querem fazer compras de volume, então só as motos não dão conta. Existe um desafio logístico grande, mas estamos expandindo fortemente.
Há algumas semanas, a Justiça de São Paulo decidiu que o iFood teria de dar, em 48 horas, álcool gel a todos os entregadores e um salário mínimo para quem fosse afetado pela covid-19. A empresa entrou com uma liminar para reverter a decisão. O que o sr. tem a dizer sobre esse episódio?
Nós já tínhamos definido que íamos fazer a entrega de álcool gel bem antes dessa decisão. O problema era viabilizar. Estava difícil comprar álcool gel e não dava para fazer entrega rápida, justamente para evitar aglomeração. Estávamos há dias buscando uma forma de fazer essa entrega aos poucos. Entramos com a liminar porque sabíamos que não dava para entregar com tanta rapidez. Sobre o salário mínimo, muita gente disse que o iFood não queria “pagar”, o que é um absurdo. O salário mínimo é a renda mínima para uma jornada integral, definida na legislação, que é de 8 horas por dia ou 44 horas semanais. E a maioria dos entregadores do iFood tem jornadas menores que isso – ele faz entregas para almoço e jantar, ou só trabalha em alguns dias da semana. Com nosso fundo de apoio, pagamos a média da remuneração dos entregadores nos últimos meses. E, na média, isso é mais que um salário mínimo. É um formato diferente, porque o entregador não é um funcionário.
Por que o entregador não é considerado um funcionário do iFood, mas sim um parceiro? Isso faz sentido, na sua visão?
Não. Se os entregadores fossem contratados de acordo com a CLT, nós não teríamos mais de 100 mil entregadores. Teríamos cerca de 10% disso, com muito menos renda acontecendo. A enorme maioria dos entregadores que estão conectados com a gente trabalha menos de 50% do tempo de um salário mínimo. Muitos deles trabalham para vários aplicativos ao mesmo tempo. Não é um formato que as leis trabalhistas de décadas conseguem regular, essa relação é bem diferente da CLT. Para nós, o formato que faz sentido é o de microempreendedor individual: o parceiro trabalha como quer trabalhar, na hora que quer, e com sua moto de propriedade. Tem entregadores que estão conosco e trabalham muitas horas e conseguem ter até R$ 3 mil como renda. E eles gostam do serviço: segundo pesquisas internas, 70% dos nossos entregadores dá nota 8, 9 ou 10 para o iFood. Eles gostam e preferem trabalhar desse jeito. Com flexibilidade para os trabalhadores, conseguimos criar mais renda e mais emprego.
Surgiu nas redes sociais um movimento nos últimos dias para as pessoas não usarem apps de entrega como o iFood. Foi uma reação a essa liminar e também à ideia de que o iFood força os entregadores a trabalhar. Como o sr. vê o tema?
Acredito que é uma minoria. A percepção do iFood hoje é favorável: nós reduzimos preços, ajudamos motoboys, geramos demanda muito grande para os restaurantes. Levantamos US$ 500 milhões há um ano e meio e gastamos quase tudo isso gerando demanda. Quando começamos, eram feitas 100 mil entregas. Em novembro, estávamos fazendo 26 milhões. Alguém pode achar que o iFood é ruim porque cobra percentual. Bem, para milhões de pessoas, geramos uma comunidade e um mercado. Fazer um pedido por telefone é algo limitado. Sempre vai ter gente que vai preferir costurar em casa, mas a maioria das pessoas compra roupas prontas. Não se consegue atingir uma escala de milhões nesse aspecto. E nesses tempos de crise, estamos prestando um serviço gigante: recebemos muito relatos de gente que pediu comida para os pais ou avós, porque não podia ir até lá por conta do isolamento social. Entregadores estão nos procurando em busca de renda. Acredito que temos um papel social relevante.
Muito se fala sobre como será o mundo após a pandemia. Que empresas terão se dado bem ou mal após essa crise que vivemos. O sr. acredita que o iFood estará bem no futuro, por conta do coronavírus?
Sou estupidamente otimista. Tenho sonhos muito grandes, megalomaníacos. Mas nos últimos 30 dias eu tenho evitado em falar neles. Tenho evitado em falar sobre como podemos nos beneficiar da crise. Temos a responsabilidade de que as pessoas comam bem, que os entregadores e os restaurantes ganhem. Podemos tomar decisões erradas se quisermos acelerar na crise. O discurso interno é que não há metas, é preciso garantir que tudo seja seguro. Dito isso, independentemente da pandemia, continuamos tendo sonhos muito grandes. Acredito que um dia veremos centenas de milhões de entregas no mês. O futuro do iFood é promissor: assim como muita gente compra camisetas hoje, as pessoas pedirão mais comida no futuro. É a visão que temos. Isso acontecerá por conta da pandemia? Não. Vamos usar o que está acontecendo agora para crescer mais? Não. O foco é a segurança.
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