Um evento imprevisível e de impacto desproporcional costuma ser designado no mundo dos negócios como “cisne negro”. Foi assim que o fundo de capital de risco Sequoia, um dos mais tradicionais do Vale do Silício, descreveu o coronavírus em uma carta às startups de seu portfólio. Enquanto ainda não se pode prever quando a crise vai acabar nem qual será sua intensidade, já é possível sentir seus efeitos no ecossistema de inovação brasileiro. Acostumado a grandes números nos últimos anos, o setor viu uma queda de 85% no volume de aportes feitos em empresas de tecnologia neste mês de março, na comparação com o mesmo mês no ano passado.
Ao todo, US$ 18,6 milhões foram desembolsados por investidores em startups do País em março, segundo dados coletados pela empresa de inovação Distrito e obtidos com exclusividade pelo Estado. No mesmo mês do ano passado, o volume havia sido de US$ 126,5 milhões. “Houve uma ruptura grande por conta do coronavírus. Historicamente, março é um mês forte de investimentos porque marca a retomada das empresas após o carnaval”, afirma Gustavo Gierun, cofundador da Distrito. “Em 2020, tivemos janeiro e fevereiro fortes, mas março foi muito fraco.”
A quantidade de investimentos no último mês até foi igual ao do mesmo período em 2019 – 18 cheques –, mas eles aconteceram em startups em estágio bastante inicial, nos chamados investimento pré-semente (até R$ 500 mil) e semente (de R$ 500 mil a R$ 5 milhões). “Em cheques menores, os investidores se sentem mais à vontade”, diz Gierun. “Depois disso, porém, é mais complicado. Vamos sofrer uma desaceleração nos próximos seis meses”, projeta ele.
Startups em estágio inicial, ainda tentando transformar uma ideia em produto ou tentando adequá-lo ao mercado, são as que devem sofrer menos – até porque o investimento nessas fases é mais ligado à qualidade do time e dos empreendedores e menos ao mercado em si. Pioneira no mercado nacional, a empresa de inovação Ace (que nasceu como aceleradora) prevê manter seu ritmo de investimentos nos próximos meses. “Estamos com três aportes por anunciar e acredito que conseguiremos fazer entre 15 e 20 investimentos este ano”, diz Arthur Garutti, executivo da área de startups da empresa, que faz cheques entre R$ 200 mil e R$ 1 milhão.
Atuante em Santa Catarina, um dos principais polos de startups do País, a Darwin Startups também prevê que vai seguir escrevendo cheques. “Vamos investir cerca de R$ 10 milhões em 20 empresas este ano. Nesta fase, importa menos a ideia e mais o olho no olho com o empreendedor”, afirma Marcos Mueller, presidente executivo da aceleradora, que está prestes a anunciar um novo ciclo em seu programa de incentivo à empresas. “Pela primeira vez, vai ser 100% remoto, o que é interessante, já que poderemos ter gente de todo o País”, diz. Os investimentos, porém, não são o foco de atenção do executivo: “deixei a escolha das empresas na mão do time e estou dedicando 100% do meu tempo a ajudar o portfólio a superar a crise”.
Segundo Mueller, a palavra de ordem no momento é sobrevivência. “Tínhamos cinco startups que estavam em meio a uma nova rodada de captação, só duas estão ainda na mesa e com termos menos vantajosos. O importante agora é manter caixa, não perder clientes e seguir em frente.” Garutti vai na mesma linha. “Muitos dos nossos clientes atendem pequenas empresas, então renegociar é fundamental. É importante mostrar que a gente é aliado na hora do aperto.”
Longo prazo
Entre fundos que costumam fazer investimentos maiores – os chamados Série A –, o humor é parecido: os investimentos continuarão a ser feitos, com cautela, mas a principal preocupação está com as empresas do portfólio. Criado há três anos, o Canary realiza uma média de dois cheques por mês, na casa de até US$ 3 milhões. É algo que não deve mudar muito, aponta o cofundador Marcos Toledo Leite. “Sabemos que o mercado não está como usual, mas conseguimos investir em empresas. O foco é escolher companhias que podem conseguir passar algum tempo sem receber um novo investimento”, afirma o executivo.
Isso porque, na visão de Leite, será difícil captar cheques maiores – do tipo Série B, no jargão do setor, e que normalmente contam com a participação de fundos do exterior. “Não sabemos se os outros fundos poderão investir. Quem não tem o Brasil como foco pode demorar para voltar a atuar aqui”, diz. “Estamos preparando todas as companhias do portfólio para ficar entre 18 meses e 24 meses sem captar. Por outro lado, quem sobreviver será visto com bons olhos no futuro.”
A mesma visão é compartilhada pelo fundo americano Valor, focado no País. “Nós somos ‘de casa’, mas quem faz cheques maiores, de Série B e adiante, como Riverwood, Tiger e General Atlantic, vai estar distraído para o País, devem focar nas suas geografias”, diz o sócio Michael Nicklas. Ele afirma que está tentando fechar os aportes que já estavam em negociação – deve ter pelo menos três rodadas anunciadas nas próximas semanas. Para o americano, porém, o foco no curto prazo será em cuidar do portfólio, com 50 empresas. “Para quem tem menos de 12 meses de caixa, estamos buscando rodadas adicionais ounovos investidores”, diz.
Pensamento parecido está no Kaszek, um dos principais fundos latinos, criado por dois cofundadores do MercadoLivre, que passou pelas crises de 2001 (bolha ponto-com) e 2008. “Provavelmente vamos investir num ritmo parecido, mas com mais cautela”, diz Santiago Fossati, que lidera a Kaszek no Brasil – aqui, a empresa já investiu nos unicórnios Loggi, Nubank, QuintoAndar e Gympass. O fundo tem orientado as empresas de seu portfólio a pisar no freio. “Quem estava pensando em lançar novos produtos tem agora que ficar no arroz com feijão”, afirma Fossati.
Nos últimos dois anos, tornaram-se corriqueiros investimentos na casa de oito ou nove dígitos (em dólares), em empresas de estágio avançado. Eles ainda podem acontecer – como o aporte de R$ 250 milhões do SoftBank na Petlove, anunciado ontem –, mas vão se tornar cada vez mais raros. Para especialistas, é bastante provável que o País veja poucas empresas virando unicórnio (avaliadas em pelo menos US$ 1 bi) este ano – em 2019, foram cinco.
União
Segundo os executivos ouvidos pelo Estado, uma das alternativas para a sobrevivência pode estar justamente na união de forças entre startups – isto é, na fusão e aquisição. Não é o cenário mais comum entre as operações do tipo no Brasil – normalmente, compras e uniões de startups acontecem por grandes empresas ou então por motivos estratégicos, como o chamado acqui-hiring, em que uma companhia adquire outra de olho em sua equipe. Mas o mercado está aquecido: só no primeiro trimestre deste ano, foram 22 operações de fusão e aquisição no País.
Na visão de André Barrence, chefe do centro Google for Startups de São Paulo, esse movimento será usado “estrategicamente, em mercados ainda pouco difundidos”. Para Gierun, “a fusão pode representar uma eficiência em custos entre duas empresas que deixam de competir pelo mesmo mercado”, diz. “Vai ter muita gente que vai ter que desistir do sonho do bilhão, do unicórnio, e repensar seus conceitos para se manter vivo.”
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