ESPECIAL PARA O ‘ESTADÃO’ - Insônia? Quedas de cabelo? Falhas na barba? Falta de libido? Disfunção erétil? Todos esses problemas de saúde masculina entraram na mira de uma nova leva de startups, que se dedicam a transformar o tabu do “homem que não se cuida” em modelo de negócio.
Focadas no setor de saúde, beleza e bem-estar, essas pequenas empresas de tecnologia usam análise de dados, personalização, telemedicina e outras tecnologias para atingir o consumidor, tentando expandir um mercado que hoje gira em torno de R$ 25 bilhões ao ano, segundo dados da consultoria Euromonitor – de acordo com o grupo, mesmo com todo o preconceito envolvido, o Brasil é o segundo maior mercado de beleza masculina do mundo, atrás só dos Estados Unidos.
A promessa de expansão em um mercado incipiente tem atraído investidores, mesmo em um cenário de escassez de capital como o atual. Exemplo disso é a rodada-semente de R$ 10 milhões levantada pela Omens (isso mesmo, sem H!), uma clínica digital de saúde masculina. Fundada em 2020 pelos franceses Olivier Capoulade e Morgan Autret, ao lado do médico brasileiro João Brunhara, que faz parte do corpo clínico do hospital Albert Einstein, a empresa chamou a atenção de investidores como a Vox, o fundo Green Rock e o japonês Incubate Fund.
Inspirada em empresas como as americanas Roman e Hims (esta última já tem até capital aberto na Bolsa de Nova York), a Omens já atendeu cerca de 25 mil pacientes na área da saúde sexual, tratando questões como disfunção erétil e ejaculação precoce. O primeiro passo da jornada do cliente é um questionário online, que serve de base para o médico em uma consulta, com o valor de R$ 79. A sessão pode ser feita por vídeo, áudio ou até mensagem de texto no WhatsApp, de maneira assíncrona – segundo a empresa, 70% das consultas usam esse último formato.
“Escrevendo, as pessoas sentem que conseguem compartilhar suas dores. É uma forma de ajudar o paciente a se abrir”, diz o CEO Capoulade, que comanda um time de 10 pessoas e uma equipe de 15 médicos parceiros. A partir da consulta, o profissional da saúde pode indicar ao paciente diversos tratamentos, como remédios manipulados (que podem ser adquiridos junto à startup), consultas com psicólogos ou até mesmo cursos online, com aulas para controle da ereção ou da ejaculação.
“Nesta primeira fase, conseguimos atender pacientes em todo o Brasil, que é um grande deserto médico. Há 5 mil urologistas no País e 1,5 mil deles ficam só na cidade de São Paulo, mas conseguimos resolver isso com o digital”, afirma Morgan, que faz planos para avançar em outros mercados – nos próximos meses, a empresa deve tratar questões como queda de cabelo, acne e foliculite, entrando no setor da dermatologia.
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Cultura do homem
Mais do que apenas usar tecnologia e propor modelos de negócios, as empresas que buscam desbravar o setor têm que lidar com uma mudança de comportamento. “Existe uma falta de hábito dos homens em acessar médicos. A mulher menstrua cedo e por isso se acostuma a ir ao ginecologista desde o começo. Já o homem não aprende a ficar à vontade para cuidar da saúde”, avalia Rodrigo Brunetti, gerente geral da Manual, que também desbrava esse mercado com certa visão “de fora”.
Veterano do mercado de startups, tendo trabalhado em fundos de venture capital (Indicator e DGF) e empresas de mobilidade (99 e Yellow), Brunetti fundou em 2020 a Toni Saúde, uma empresa de telemedicina voltada para a saúde masculina. Após poucos meses de funcionamento, no auge da pandemia, a Toni acabou se fundindo com a inglesa Manual, que operava no ramo desde 2018. Com a união, a empresa captou uma rodada de US$ 30 milhões com investidores como Sonoma Brands, FJ Labs e Waldencast – este último, especializado em saúde e beleza que já apostou, entre outras, na brasileira Sallve, referência em cuidados para a pele (skincare).
Na Inglaterra, a empresa oferece atendimento em áreas como peso, exames de sangue, sono, disfunção erétil e queda capilar – aqui no Brasil, apenas os três últimos estão disponíveis. Aqui, a empresa oferece tanto consultas específicas quanto planos de tratamento recorrentes, apoiando-se em uma rede de especialistas e de tecnologia para atender seus consumidores. “Para tratar queda capilar, não basta só ter um dermatologista, é preciso buscar um especialista em pelos – chamado tricologista. Achar isso não é simples, mas é o atendimento que queremos oferecer”, diz Brunetti.
O tratamento, porém, não acaba na prescrição do médico: para ter certeza de sucesso, a empresa tem sistemas de engajamento com o cliente, colocando à disposição um time de farmacêuticos e robôs de bate-papo (chatbots) para tirar dúvidas do paciente, se for o caso. “É a forma de criar um ambiente em que o problema de saúde é tratado de forma fácil, ágil e sem pressão”, afirma o executivo da Manual.
Veterana no ramo
Se Omens e Manual são esforços mais recentes, há quem já esteja desbravando esse “mato alto” há algum tempo. É o caso da Dr. Jones, startup de beleza que nasceu em 2013 com foco em vender para farmácias e, aos poucos, foi se tornando uma marca com foco no digital e venda em seus canais próprios. Seu carro-chefe, conta o CEO Guilherme Campos, é uma lâmina de barbear (R$ 36, no kit com cabo e 4 recargas de 6 lâminas), mas a linha de produtos também inclui soluções para o cabelo e até um gel redutor de gordura abdominal (R$ 130).
Tem consumidor que reage mal, mas não estamos nem aí: o problema é de quem não gosta.
Guilherme Campos, CEO da startup Dr. Jones
No mês passado, a trajetória de uma década da empresa ganhou nova força, após a aquisição pelo Grupo Boticário – com a integração, a meta da Dr. Jones é expandir sua presença em diferentes canais, mas os executivos evitam dar detalhes do plano. Egresso do mercado financeiro, Campos conta que a percepção do mercado mudou muito desde a criação da empresa. “Ninguém entendeu nada quando a gente começou uma marca de beleza masculina. Acharam que era uma marca para o público gay”, lembra. Para ele, o diferencial da Dr. Jones está no uso dos dados e na inteligência para, aos poucos, apresentar novos produtos para o consumidor.
“Nós sabemos que a maioria dos homens não está pronto, por exemplo, para o skincare, mas, com tecnologia, a gente pode entender quais consumidores que compram barbeador podem fazer essa transição, fazendo uma jornada completa”, explica Campos, que não vê sua marca expandindo para o ramo da saúde – para ele, há outras categorias no ramo da beleza, como perfumes e desodorantes, para navegar antes disso. O que importa é ajudar o homem a se sentir à vontade consigo mesmo, sem preconceitos, diz ele. “Nós temos campanhas, por exemplo, do dia do Orgulho LGBTQIA+. Tem consumidor que reage mal, mas não estamos nem aí: o problema é de quem não gosta.”
Questão de discurso
Para Eliza Casadei, professora de Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM, o desafio de comunicação dessas empresas é enorme – ainda mais por se tratar de uma pauta recente. “A figura do consumidor masculino só surge por volta dos anos 1940, com produtos como álcool, carros e charutos. Beleza é um tema que só vai surgir nos anos 1990. É praticamente ontem”, explica.
Até por conta disso, as empresas precisam utilizar um discurso mais ousado na hora de conquistar o consumidor – quase sempre, diz a especialista, atrelando o cuidado a uma meta de sucesso. “O homem vai cuidar da pele para se dar bem no trabalho, mostrar que é forte, para evitar câncer de pele. Tem sempre um argumento racional, diferentemente do que acontece com as mulheres. Para elas, a beleza pode ser uma finalidade.”
É um discurso que encontra eco na forma como os empreendedores descrevem suas empresas. “A The Men’s nasce para alterar a percepção de saúde de quem se identifica como homem: a gente não gosta de se cuidar, fomos formados numa sociedade em que se cuidar era feminino. O homem quer a solução e nós viemos para facilitar essa jornada”, diz Danilo Bertasi, CEO da startup fundada em março de 2021. Ex-Ambev, Bertasi tem o apoio de investidores como a empresa Adventures e a farmacêutica Eurofarma, além do fundo MIT Angels, para dar suporte completo ao homem, em uma linha de produtos que inclui xampu antiqueda, cremes antienvelhecimento para a pele (R$ 100) e até mesmo chás energizantes (R$ 70, a caixa com 60 sachês) e chocolates com melatonina, para quem tem problemas de insônia (R$ 30, a caixa com 10 drágeas).
Assim como as competidoras, a The Men’s também começa seus tratamentos sempre com uma consulta gratuita de telemedicina, na qual um médico vai ajudar o paciente a definir quais tratamentos ele precisa. Além disso, a empresa conta com um sistema de robôs de conversa para acompanhar o paciente em sua jornada.
“Cuidar de si mesmo pode ser legal. Além disso, um homem bem cuidado é mais feliz, tem mais disposição no trabalho e trata o parceiro ou parceira melhor”, diz o empreendedor, que está em busca de uma nova rodada de investimentos neste final de 2022, ano em que viu a receita crescer 700%. Com o aporte, ele planeja expandir o time da The Men’s de 7 para 20 pessoas ao longo dos próximos doze meses.
Presente em diferentes ramos, ele reconhece que disputa espaço com outras empresas – e vê zero problema nisso. “Fico feliz quando surge uma startup para homens, não acho que uma empresa só vai consolidar o mercado”, diz. Em vez de olhar para os lados, Bertasi prefere olhar para frente. “Existe tanto problema para a gente ajudar: cabelo branco, dor em articulação, diabetes, questões sexuais, até mesmo chulé. A gente pode ir para onde a gente quiser.”
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