Apesar de ainda não haver soluções tecnológicas para o zumbido de uma broca ou para a dor de uma cárie, startups brasileiras estão começando a levar inovação para dentro dos consultórios odontológicos. Tentando desburocratizar atendimento e aliviar o incômodo de tratamentos, essas empresas buscam transformar o mercado com o maior número de dentistas do mundo – são 310 mil brasileiros, 19% dos profissionais do planeta, segundo o Conselho Federal de Odontologia (CFO).
“Sermos líderes nos coloca em boa posição para comandar a revolução do setor”, afirma Arthur Garutti, sócio da empresa de inovação Ace. Um bom exemplo da área que tem ganhado inovação é a de alinhadores dentais transparentes – uma espécie de aparelho fixo de metal, mas com evolução no design, misturando elasticidade e resistência. Diferentemente do aparelho comum, formado por bráquetes, o alinhador não fica visível e pode ser retirado da boca quando a pessoa achar necessário, mas fazem pressão do mesmo jeito para que um sorriso torto seja corrigido com o tempo.
Inspiradas na americana Invisalign, duas startups comandam essa briga por aqui: a Smilink e a SouSmile. A meta de ambas é aumentar o conhecimento sobre o produto e baratear seu custo usando inovação. Entre as ferramentas usadas, estão mapeamento digital da arcada dentária e uso de impressoras 3D para fabricar o alinhador – o acessório deve ser trocado periodicamente, a cada dois ou três meses, para acompanhar a evolução do paciente.
“Nosso maior problema é que as pessoas não conhecem o alinhador. Quem conhece acha que é caríssimo”, diz o argentino Marcos Boysen, que imigrou para o Brasil para fundar a Smilink. Hoje, a startup tem três lojas no País e uma em Buenos Aires, fazendo 150 atendimentos por mês. Cada tratamento, em média, custa a partir de R$ 2,3 mil – para efeito de comparação, o alinhador da Invisalign pode custar mais de R$ 10 mil. “Queremos democratizar o acesso ao aparelho pelo Brasil, sabemos que hoje não é algo barato – mas já não é mais algo caríssimo”, afirma Boysen.
A SouSmile também tem um fundador estrangeiro: o português Michael Ruah, que passou pela BRF e foi, ele próprio, um usuário de aparelhos fixos antes de fundar a empresa. Com quatro lojas em São Paulo, todas em shoppings, a startup oferece um produto muito similar ao da Smilink, mas sensivelmente mais caro – em torno de R$ 3,9 mil. Ao Estado, Ruah justifica que sua empresa traz uma “experiência diferenciada”, com uma linha de produtos para o usuário, incluindo pasta de dentes e manteiga de cacau.
A empresa também atraiu investidores de peso: em outubro, recebeu uma rodada de aportes de R$ 20 milhões liderada pelos fundos Kaszek Ventures, Global Founders Capital e Canary – os dois últimos já tinham feito um aporte de US$ 1,1 milhão na empresa no ano passado. Segundo Ruah, os aportes devem ajudar a empresa a expandir suas operações e, ao mesmo tempo, baratear o custo do alinhador.
Além disso, a SouSmile busca também disseminar o conhecimento sobre seu produto entre os profissionais. “Até algum tempo atrás, as faculdades não ensinavam os dentistas sobre outras possibilidades de tratamento, como o alinhador transparente. Havia pouca adesão de dentistas para essa tecnologia”, explica o empreendedor português. “Mas isso está mudando: as pessoas chegam em seus dentistas e já pedem essa opção de tratamento.”
Empresa faz ponte entre dentista e laboratório de prótese
A busca por eficiência e redução de custos, porém, não se reduz apenas aos alinhadores. Depois de operar brocas e outros aparelhos por anos, o dentista Luis Calicchio decidiu empreender para resolver um problema do dia a dia de sua profissão: o relacionamento entre os consultórios e os laboratórios de próteses dentárias. “A profissão de dentista sempre foi algo artesanal e era difícil estabelecer conexão assertiva com os laboratórios”, diz Calicchio. “Os prazos eram longos, a qualidade das próteses variava e, muitas vezes, os laboratórios tinham de lidar com a inadimplência.”
Da insatisfação nasceu a UDlab, que oferece uma plataforma “de ponta a ponta” para os pedidos de próteses. Por meio da ferramenta da startup, é possível enviar a descrição e o desenho, realizar o pagamento e até saber a data de entrega para o dentista – o que dá agilidade para os pacientes e consultórios. Além disso, a solução permite personalizar o pedido com especificidades técnicas, como cor e material da prótese, bem como enviar fotos e vídeos da arcada de cada pessoa.
Fundada em 2019, a empresa espera fechar seu primeiro ano de operações com 1,9 mil dentistas ativos na plataforma – seu modelo de negócios está baseado em cobrar uma comissão de 15% dos pagamentos recebidos pelos laboratórios. Para o fundador da UDlab, há um enorme mercado em potencial pela frente. “Só 2% do mercado ortodontista brasileiro é digital”, diz. “A gente nem começou.”
Inovação vai além dos dentes
As inovações, porém, não se limitam às startups. Na USP, a Faculdade de Odontologia (Fousp) e o Departamento de Engenharia Mecatrônica da Escola Politécnica (Poli) se uniram para criar um algoritmo que ajuda na aplicação de prótese bucomaxilofacial – incluindo o maxilar, o nariz e até a orelha.
Para isso, construiu-se um banco de dados com muitas fotos para ajudar a confeccionar o membro perdido mais facilmente. A ideia é facilitar o processo de desenvolvimento das próteses, com algo grau de complexidade dentro da ortodontia. No futuro, os envolvidos também esperam finalizar uma impressora 3D para imprimir próteses.
“Seria ótimo ter uma máquina ajudando em um processo tão demorado, cuidadoso e artesanal”, explica a professora Neide Pena Couto, da Fousp. Segundo ela, esse projeto mostra a essência da inovação no setor de odontologia. “É preciso juntar áreas, conversar com pessoas que entendem de coisas que você não entende”, afirma a professora. “O dentista ficou dentro do consultório durante anos. Agora pode ser a hora de ir em busca de outras soluções.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.