Durante anos, as instalações das empresas de tecnologia do Vale do Silício chamavam pouca atenção. Fundadas em garagens, essas empresas usavam edifícios baixos de escritórios, discretos, quando começavam a crescer. À medida que elas se expandiam, o número de edifícios de uma sede crescia. De aparência exterior genérica, mas cheios de mordomias, eles se tornaram um padrão de escritório de tecnologia que vigorou por anos.
Mas, no decorrer da última década, as gigantes de tecnologia investiram em imóveis e escritórios centrais de verdade. O tipo de instalações que chamam a atenção e atraem milhares de funcionários, trabalhando cinco dias por semana em suas plantas abertas, além de turistas de toda parte do mundo. Para os empregados, porém, generosos benefícios dão a esses trabalhadores poucas razões para sair para almoçar, ir ao banco ou levar roupas para a lavanderia.
A Apple tem um edifício de 70 hectares em Cupertino, uma “nave espacial” circular de US$ 5 bilhões, ainda nova. A Amazon instalou redomas de vidro gigantes criando estufas no andar térreo de sua principal torre, no centro de Seattle, parte de uma instalação de US$ 4 bilhões na cidade. A Salesforce mudou o panorama de São Francisco com seu imenso arranha-céu bilionário, com animações no topo formando silhuetas dançantes e até o Olho de Sauron, um ícone da saga O Senhor dos Aneis.
O Google está construindo um edifício de 55 mil metros quadrados semelhante a uma tenda de circo em Mountain View, que deve ser concluído no ano que vem. E ao lado de um charco da baía em Menlo Park, o Facebook ergueu edifícios retangulares com o estilo de Frank Gehry com árvores na cobertura, ao custo de aproximadamente US$ 300 milhões cada, de acordo com a Build Zoom.
Em março, os deslocamentos até o trabalho cessaram. Os escritórios de muitas empresas de tecnologia nos Estados Unidos seguem total ou parcialmente fechados desde o início da pandemia do coronavírus, e algumas das maiores delas, como Google e Facebook, disseram aos funcionários que poderão seguir com o trabalho remoto até meados de 2021, no mínimo.
Um punhado delas, como Twitter e Slack, chegaram a afirmar que o trabalho remoto, seja de casa ou de outra parte do país, será indefinidamente uma alternativa para alguns funcionários ou até todos eles.
O presidente executivo do Google, Sundar Pichai, disse que a empresa estava procurando modelos mais flexíveis de trabalho pessoal e remoto em entrevista recente à revista Time, depois que um levantamento interno revelou que 62% dos funcionários queriam retomar o trabalho no escritório em “alguns dias". Até a Apple parece estar aceitando a mudança,mesmo que não oficialmente (ainda).O presidente executivo Tim Cook disse que entre 10% e 15% dos funcionários voltaram ao escritório, mas que as coisas não voltarão inteiramente a ser como eram. Uma apresentação recente dos mais novos aparelhos da empresa mostrou um edifício quase vazio.
Quando a pandemia recuar e os escritórios voltarem a ser uma alternativa segura, esses ambientes de trabalho podem ser transformados para sempre. O escritório central corporativo que funciona ao mesmo tempo como espaço de trabalho e esforço de marca também pode mudar, com repercussões nas comunidades que cercam essas instalações.
Ainda é cedo para saber quais tendências serão mantidas. Tudo pode depender daquilo que agradar a próxima geração de trabalhadores. “A Amazon e outras empresas de tecnologia não estão disputando talentos medianos, e sim os melhores dos melhores. Aqueles que produzirão patentes e propriedades intelectuais com o potencial de serem o próximo iPhone, a próxima Alexa ou Netflix", disse Mike Grella, fundador da Grella Partnership Strategies e ex-executivo da Amazon que trabalha com desenvolvimento econômico.
Êxodo
Se mimos como o escorregador interno gigante do YouTube, as instalações quase universitárias do Google, repletas de bicicletas, e a comida gratuita do Facebook foram atrativos no passado, a covid-19 mudou as expectativas de muitos funcionários.
O custo da habitação no Vale do Silício e em Seattle ainda está entre os mais altos dos EUA, e rigorosas leis de zoneamento – além de toda a água que cerca essas regiões – tornaram quase impossível construir lares suficientes para acompanhar a demanda esgotada pela empresas de tecnologia. Como forma de compensação, os funcionários das gigantes recebem altos salários além dos generosos benefícios, e às vezes até recebem ajuda das empresas na busca por moradia.
Durante a pandemia, alguns funcionários de tecnologia encontraram uma maneira de pagar menos. Eles saíram das cidades maiores rumo aos subúrbios, ou até deixando os Estados onde suas empresas têm sede. Com frequência, suas decisões são motivadas pela busca de mais espaço e um custo de vida mais baixo, mas também pelo desejo de ficar mais perto da família.
Depois que as pessoas se acostumam a ter mais flexibilidade em se tratando de onde podem morar, pode ser difícil para as empresas de tecnologia fazer vigorar normas antigas como ir diariamente ao escritório, participar de reuniões em salas ou conversar por cima das divisórias dos cubículos.
Algumas empresas de tecnologia mudaram seus planos imobiliários. O Pinterest pagou uma taxa de cancelamento de US$ 89,5 milhões para desistir do escritório de 45.500 metros quadrados para o qual planejava se mudar em São Francisco. A empresa, que está mantendo o escritório atual na cidade, disse que a covid-19 tornava possível manter uma força de trabalho mais distribuída.
O Twitter está sublocando 9,3 mil metros quadrados de seus escritórios no centro de São Francisco, depois de ter anunciado que os funcionários da empresa poderão escolher se trabalharão a partir de casa permanentemente.
Faz tempo que vemos ciclos de ocupação da região da Baía de São Francisco por diferentes empresas, mas ainda é cedo para dizer se as decisões delas são parte de uma mudança maior ou apenas uma tendência temporária.
“Será que ainda veremos a região da Baía de São Francisco criar novas empresas para ocupar o espaço daquelas que partiram?” disse Nick Josefowitz, diretor de políticas da SPUR, centro de estudos de planejamento urbano da área. “Já faz algum tempo que contamos com isso. Não podemos mais contar com a possibilidade de sermos eternamente o centro do ecossistema tecnológico."
Vila da firma
Muitas das gigantes de tecnologia seguem avançando na sua expansão imobiliária, incluindo uma nova geração de instalações que seguem na direção oposta. São a versão moderna das cidades ligadas a empresas, misturando espaço público, comércio e habitação aos escritórios tradicionais. Para quem é vizinho da empresa onde trabalha, a decisão de optar ou não pelo trabalho remoto é subitamente mais simples.
Willow Village é o simpático nome do campus de 24 hectares planejado pelo Facebook em Menlo Park, já em construção há pelo menos três anos. O mais notável no plano, ainda em fase de análise, não é o espaço dedicado aos escritórios - atualmente 115 mil metros quadrados - e sim aquele dedicado a outras finalidades. Há um mercado e uma farmácia, um hotel, um parque elevado, uma “pracinha”, ciclovias, centro de visitantes e parque canino. Há também planos para até 1.735 unidades habitacionais, das quais cerca de 20% seriam oferecidas a valores “abaixo do mercado".
“Metade dos nossos funcionários poderá trabalhar remotamente nos próximos dez anos. Também estamos crescendo rápido. Seguimos investindo em escritórios adicionais em todo o mundo e temos nosso compromisso com nosso escritório da região da Baía“, disse Chloe Meyere, porta-voz do Facebook.
O Google tenta algo semelhante em Mountain View, com uma nova proposta de um bairro de 16 hectares voltado para “habitação e trabalho” chamado Middlefield Park. O projeto prevê uma mistura de escritórios, lojas e até 1.850 unidades habitacionais em espaço arborizado, áreas nas quais os não funcionários da empresa também seriam bem-vindos. A construção deve começar pela parte habitacional em 2022, e a primeira fase pode ser concluída entre 2025 e 2026.
Mais ao sul, em San Jose, a gigante da publicidade está trabalhando em planos para o mega-campus de 32 hectares em Downtown West, incluindo até 680 mil metros quadrados de escritórios e cerca de 4 mil unidades habitacionais, além da mistura de espaços públicos e privados que acompanha as propostas desse tipo. A construção poderia começar nos próximos anos se o governo municipal aprovar o projeto.
Esse tipo de campus pode ajudar as empresas a controlar melhor suas comunidades, ao mesmo tempo oferecendo benefícios para os moradores que não são funcionários. Falando em conexão com a comunidade e design ambiental, elas também são uma tentativa de fazer um apelo aos valores dos empregados em potencial, disse Grella.
“Parte da ideia é falar à necessidade de espaços abertos da geração millennial", disse Grella. “Há entre os millennials uma forte tendência de preocupação com o meio ambiente e a criação sustentável de lugares e espaços abertos. Me parece que tudo isso é um apelo bastante intencional para funcionários com esse perfil."
Dar aos empregados motivos para permanecer por perto é uma das estratégias das empresas de tecnologia. Outra é reunir-se com os talentos em potencial onde desejam viver.
A Amazon mudou a forma de se pensar em escritórios ao obrigá-las a pensar em escritórios centrais sem parar durante a maior parte de 2018. A empresa deu início a uma busca nacional pelo local de sua segunda sede corporativa, que teria custo de US$ 5 bilhões e empregaria até 50 mil pessoas. Batizada de HQ2, a busca logo se tornou uma disputa midiática entre diferentes cidades tentando atrair a empresa e sua promessa de revitalização econômica com isenções fiscais e outros incentivos.
A dramática corrida teve um desfecho anticlimático depois que a Amazon escolheu Long Island para a construção de metade do campus prometido, para em seguida recuar diante das objeções de grupos comunitários e legisladores diante dos quase US$ 3 bilhões em isenções fiscais oferecidos à empresa.
A ideia de diversificar a localização dos escritórios seguiu viva na empresa, que levou adiante planos para a construção de uma base na região de Crystal City, em Arlington, Virgínia. E a diversificação de localidades está se tornando mais interessante para outras empresas de tecnologia conforme os profissionais talentosos se espalham durante a pandemia.
Muitos dos principais nomes do setor tecnológico estão investindo em “polos” menores, ou escritórios grandes fora da sede. O Facebook acaba de comprar o campus da empresa de equipamento esportivo de aventura REI em Bellevue, Washington, com 37 mil metros quadrados, por US$ 367,6 milhões.
Em agosto, a Amazon anunciou planos para contratar mais funcionários para os escritórios de Dallas, Detroit, Denver, Nova York, Phoenix e San Diego. A empresa também está se expandindo mais perto de casa, com novos planos para outras 25.000 vagas de trabalho em Bellevue, subúrbio de Seattle. O Google está inaugurando novos escritórios em Houston e recentemente ampliou sua presença em Atlanta, Chicago e Madison (Wisconsin).
Will Hunsinger, presidente executivo da firma de recrutamento de executivos Riviera Partners, do Vale do Silício, diz que seus clientes tentam recrutar profissionais talentosos na região da Baía de San Francisco valorizando os benefícios de seus endereços menos óbvios, como Austin, Boulder (Colorado) e até Bozeman (Montana).
Em geral, as empresas de tecnologia com as quais ele trabalha estão indecisas diante de uma possível aposta no trabalho remoto. Pode ser um mimo tentador para atrair empregados talentosos, mas a maioria das empresas ainda prefere ter seu pessoal no escritório, disse ele. Talvez as organizações menores tentem primeiro, pois isso poderia lhes poupar dinheiro com aluguel e imóveis, ao mesmo tempo sendo encarado como benefício. As empresas também podem oferecer salários mais baixos para quem fora fora das caras cidades litorâneas.
“Para os altos executivos, a proximidade é mais importante. Para o trabalhador individual, de posição intermediária, talvez a novidade se mostre mais vantajosa", disse Hunsinger.
Nas comunidades que já foram alteradas para sempre com a sua presença, com a escalada nos aluguéis e valores dos imóveis, a gentrificação e os investimentos em infraestrutura, o futuro desses escritórios centrais é complicado. Se permanecerem e crescerem, os problemas de desigualdade, falta de moradia e gentrificação podem ser exacerbados. Se as empresas se retirarem, pode ser que levem consigo uma fatia da economia local.
“Por surpreendente que possa parecer, o maior impacto não recai sobre os funcionários mais qualificados, e sim sobre os proprietários e pequenos comerciantes", disse Adie Tomer, pesquisador da Brookings Institution. “Eles podem ser duramente atingidos, a ponto de isso criar um ciclo negativo."
Os problemas de moradia dessas cidades não serão resolvidos logo, mesmo se os governos municipais e estaduais relaxarem o zoneamento atual. Isso cria oportunidades para empresas onde há oferta de moradia mais ampla em bairros densos, espaço para os escritórios e acesso à natureza. Entretanto, essas mesmas cidades podem se ver em situação parecida com o Vale do Silício e Seattle se não planejarem antecipadamente a questão da moradia.
“Instala-se uma relação simbiótica e parasitária entre as empresas e as cidades, tal é o grau de sua interdependência", disse Tomer.
As empresas e seus funcionários são uma parte importante da receita fiscal das cidades em que se localizam. Ainda que o custo de parte da moradia caísse, o custo da prestação dos serviços sociais das quais as comunidades dependem seguiria alto, de acordo com Josefowitz. daSPUR. “O resultado será uma base fiscal reduzida para o investimento em serviços sociais essenciais dos quais nossas comunidades dependem”, disse ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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