Em inglês há uma grande expressão: take for granted. É algo como ‘dar por certo’, sequer cogitar que algo possa não existir. Estamos lidando, no Brasil, com um novo governo de corte particularmente autoritário, que parece agir como se tivesse o direito de perseguir quem não compartilha de suas ideias. É, em sua ação, ímpar, único na Nova República. Mas não custa olhar para o norte do mapa, encarar de frente a Venezuela, para lembrar como é uma ditadura. Como é censura. Por aqui, a gente take for granted certas coisas – como internet e redes sociais, por exemplo. Nos queixamos de como operam. Cá esta coluna, um quê ranzinza, certamente o faz com frequência. Pois é. Como estão fazendo falta, as redes sociais, para nossos vizinhos.
É impossível saber o quanto o bloqueio à internet interferiu na quantidade de pessoas que foram às ruas apoiar o levante promovido pelo presidente da Assembleia Nacional venezuelana, Juan Guaidó. Mas, como é o único meio de comunicação com o qual a oposição conta, o impacto certamente foi severo. Não é difícil, para o regime liderado por Nicolás Maduro, controlar a internet. E alguns números explicam o porquê.
A fonte é a BuddeComm, uma consultoria especializada no ramo de telecomunicações que pesquisa uso e tamanho das redes pelo mundo. O principal provedor de banda larga da Venezuela é a CANTV, uma estatal que ainda conta com uma infraestrutura baseada em par trançado de cobre. Algumas das companhias de televisão a cabo também oferecem acesso, mas são muito menores. A velocidade média da banda larga no país dos bolivarianos é de 1,61 Mbits/s. No Brasil, como margem de comparação, a velocidade média é de 24,62 Mb/s. A Netflix, por exemplo, para garantir qualidade SD – abaixo de HD – exige uma conexão de pelo menos 5 Mb/s.
Na telefonia celular o cenário não é diferente. O número de pessoas com smartphone, que chegou a passar de 100% da população por conta de muitos terem mais de um aparelho, vem caindo. Cada vez mais gente não tem como pagar as contas. É o líder regional em troca de mensagens de texto – o bom e velho SMS. Não à toa: a velocidade à qual muitos estão submetidos dificulta uso da internet. Uma boa parte dos usuários sequer têm conexões 3G.
Por controlar boa parte da infraestrutura de telecomunicações, não é difícil para o governo controlar quem pode acessar o quê. E o regime não hesita em adotar censura pontual, sempre que considera necessária. Imediatamente após Juan Guaidó divulgar no Twitter um vídeo afirmando ter as Forças Armadas ao seu lado, na manhã de 30 de abril, a internet começou a oscilar.
Segundo análise da NetBlocks, uma ong europeia que estuda censura das redes, estão fora do ar, desde a terça-feira, Twitter, Facebook, Instagram, YouTube, Bing, os serviços de mensagem do Google e o Periscope, usado para vídeos ao vivo. O Telegram foi bloqueado na web, mas tem recursos para furar censura via app. WhatsApp permaneceu instável o dia todo.
A NetBlocks entende do riscado – seu diretor, Alp Toker, vem da Turquia, um país no qual o governo Erdogan usa deste tipo de artifício a toda hora.
Um dos indícios de que o governo tinha controle da rede é que, 20 minutos antes de Maduro falar à população, naquela noite, a rede voltou a funcionar normalmente. Terminado o pronunciamento, foi a vez de Guaidó se manifestar – a intermitência retornou.
Um dos primeiros sinais de que um regime é uma ditadura é justamente este: controle pleno da informação. Não é uma arma pequena. Ajuda, e muito, a quem não pretende deixar o poder.
Como é bom viver numa democracia. Até para reclamar das redes. E do governo.
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