Se funciona; está obsoleto

Livro de Douglas Coupland tenta atualizar o papa da mídia para a geração digital

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Por Redação
Atualização:

Por David Carr

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Lá vem. Outro livro sobre mais um pensador moderno que sugere que a “interdependência eletrônica” é o aspecto que define o nosso tempo. Tudo seria mais do mesmo, não fosse o fato de Marshall McLuhan, o personagem do livro em questão, ter chegado a esse conceito 50 anos antes que qualquer um de nós atualizasse sua página de perfil no Facebook ou dissesse o que anda fazendo no Twitter.

Marshall McLuhan: You Know Nothing of My Work! (Marshall McLuhan: Você Não Sabe Nada Sobre o Meu Trabalho!, sem tradução para o português) é um título improvável para um livro estranho. Não estranho no mau sentido, mas apenas a ponto de fazer você parar para pensar sobre o que, afinal, o autor, Douglas Coupland, quer com isso.

Assim como o homem cuja vida ele narra, o livro de Coupland é cheio de nuances, ricochetes e ressonâncias nada convencionais. Em vez de ser um adendo ao cânone sobre o Grande Homem, tem pouco mais de 200 páginas que se estendem e se desenrolam com um ritmo idiossincrático próprio.

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Trata-se de um livro que dará muito trabalho aos acadêmicos que fizeram carreira desconstruindo o esforço de McLuhan para definir o moderno ecossistema da mídia. Mas para um leitor interessado em um divertimento sério, um mergulho na vida e na obra de alguém que fingimos entender, mas, na realidade, não conhecemos, Você Não Sabe Nada Sobre o Meu Trabalho! é uma interessante provocação.

O livro vale a pena porque se recusa a mesclar-se ao vórtice do discurso acadêmico anestesiado, preferindo um enfoque efervescente da cultura pop para explicar um pensador profundo, que acabou se tornando popular quase contra a própria vontade.

O livro será muito útil para aqueles que gostam de repetir a frase “O meio é a mensagem” – graças à qual o público em geral se conscientizou da existência de McLuhan – sem compreender realmente que o homem que a criou achava o triunfo do contexto sobre o conteúdo profundamente deprimente.

Astro. Sim, todos sabemos que McLuhan foi um rock star em termos de projeção, figurando ao lado de Andy Warhol e de Timothy Leary no panteão dos anos 1960 (a revista Time publicou uma edição em que o trazia na capa com a manchete “O cometa intelectual do Canadá”), mas, afinal, do que será que ele falava?

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Coupland explica que o que fez de McLuhan uma personalidade marcante foi sua capacidade de antecipar a homogeneização e a desumanização dos meios de comunicação em massa quando o fenômeno ainda se encontrava na sua infância.

Prisioneiro e ao mesmo tempo um produto da vida acadêmica, McLuhan se destacou porque reconheceu os efeitos tóxicos da mídia muito antes de esta virar o ar que todos respiramos. E fez isso antes que existisse um conhecimento autêntico de como os seres humanos processam a informação mediada.

Como escreve Coupland: “Não devemos esquecer que Marshall chegou a essas conclusões não orbitando ao redor da NASA, por exemplo, ou da IBM, mas estudando misteriosos panfletistas da Reforma do século 16, os escritos de James Joyce e os desenhos com perspectiva da Renascença. Ele foi um mestre no reconhecimento de padrões, o homem que toca um tambor tão grande que só é percutido uma vez a cada cem anos”.

Pontual. Em termos menos benévolos, McLuhan foi o relógio que estava espetacularmente certo uma vez em cada século. O que o tornou singular não foi sua precisão – qualquer um que considere Finnegans Wake uma obra fundamental provavelmente terá um baixo coeficiente sinal/ruído.

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Entre trocadilhos, aforismos, linguagem digressiva que parecia correr atrás de si mesma ao propor enigmas ao leitor, McLuhan apresentou uma teoria da geração e do consumo da comunicação tão plástica e adaptável que descreve a era atual sem o menor esforço.

Coupland, que escreveu abundantemente na internet e sobre a internet, não se limita a discutir como McLuhan previu um mundo que não viveu para ver – ele morreu em 1980 – mas simplesmente formulou a linguagem e deixava que o leitor se maravilhasse retrospectivamente. Depois de fazer uma análise relativamente direta do conteúdo da publicidade em The Mechanical Bride: the Folklore of the Industrial Man (A Noiva Mecânica: o Folclore do Homem Industrial, sem tradução para o português), em 1951, McLuhan começou a refletir sobre os sistemas que produziam toda essa retórica comercial.

E então, a começar por The Gutenberg Galaxy: The Making of the Typographic Man (A Galáxia de Gutenberg: A Criação do Homem Tipográfico), de 1962, e em seguida com Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, de 1964, ele percebeu as dimensões de uma incipiente aldeia global em que os meios de comunicação começavam a estabelecer os limites e a dominar a conversação. Quando escreveu “moldamos nossas ferramentas e depois nossas ferramentas nos moldam”, estava descrevendo uma revolução da televisão e das telecomunicações, mas também estabelecia as implicações da rede de consumidores quatro décadas antes que ela desabrochasse.

No léxico de McLuhan, a internet seria um meio fundamentalmente frio (e, portanto, “cool”), definido pela participação e por uma multiplicidade de contribuições. E ele estava longe de ser romântico em sua definição, mesmo naquela época, quando a abordagem parecia significar um discurso civilizado, gentil. “Quando as pessoas se aproximam, elas se tornam cada vez mais selvagens e impacientes umas com as outras”, disse McLuhan. “A aldeia global é um lugar de interfaces muito árduas e situações muito abrasivas”.

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Colocando isto em um contexto contemporâneo, o que acontece agora que qualquer um equivale a uma emissora? Uma tecnologia barata e onipresente (câmeras digitais) somada a uma via sem obstáculos para o público (YouTube) implicam que as pessoas podem transmitir imagens de seu colega de quarto, gay enrustido, fazendo sexo, e que o astro não intencional de sua pequena rede poderia mais tarde, tragicamente, pular de uma ponte.

Trajeto. Nas mãos de Coupland, a formação de McLuhan é um exercício loquaz, falastrão, no qual os seus encontros, quando era ainda um jovem acadêmico, com a obra do escritor inglês G.K. Chesterton, conhecido como o príncipe do paradoxo, são tão importantes quanto o fato de que ele passava horas infindáveis argumentando e tentando impressionar a própria mãe, perpetuamente insatisfeita, que ensinava oratória no Canadá. Nascido Herbert Marshall McLuhan em Edmonton, Alberta, em 1911, ele estudou na Universidade de Manitoba, formando-se antes de partir para Cambridge, onde estudou com I.A. Richards e F.R. Leavis e sofreu a influência da Nova Crítica.

Em seguida, deu aulas na Universidade de Wisconsin, Madison, antes de começar um longo período como professor em várias universidades católicas, inclusive na St. Louis University e no Assumption College, encerrando a carreira em St. Michael’s, uma faculdade católica da Universidade de Toronto. Sua fama crescente motivou a criação do Centro para a Cultura e Tecnologia da cidade, que seria sua base intelectual. Coupland afirma em termos convincentes que McLuhan pensava de maneira diferente porque ele tinha uma anomalia biológica: duas artérias bombeavam sangue para o seu cérebro. (Essa anomalia costuma ser considerada, sob alguns aspectos, a causa do derrame que o deixou com problemas na fala.)

Febre. Por causa de uma espécie de tendência, quase uma infecção nas biografias de pessoas excêntricas responsáveis por grandes impactos, McLuhan é também colocado no espectro do autismo. E dada sua sensibilidade a ruídos, seu amor pelo ritual, sua aversão pelo contato físico e o esquecimento em geral, isso não deve ser excluído.

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McLuhan foi uma mistura de notáveis incongruências: detestava TV, mas assistiu o suficiente para se dar conta de sua capacidade de gerar uma cultura de massa. Estava mais interessado em Dagwood Bumstead (Alarico, na versão brasileira), personagem da história em quadrinhos Blondie (Belinda, no Brasil), e seus efeitos danosos sobre o macho moderno americano do que na Segunda Guerra Mundial, embora tenha se mudado para a Inglaterra para estudar em Cambridge no mesmo dia em que a guerra foi declarada.

Adorava ensinar, mas usava ao máximo uma linguagem indireta e pouco se interessava pelos pensamentos dos outros, a não ser que fossem escritos com detalhes e submetidos a uma análise rigorosa. Era um rabugento paranoico, que não só acreditava no inferno com o fervor de um católico recém-convertido, como achava que o mundo caminhava rapidamente para aquele portal em chamas.

Meme. Coupland não tem a pretensão de ter escrito a biografia definitiva de McLuhan. Você Não Sabe Nada Sobre o Meu Trabalho! é um rascunho sobre alguém que cunhou um meme – “a aldeia global” – feito por outro que também cunhou o seu próprio: Coupland escreveu o livro Geração X, em que rotulava os nascidos entre a revolução hippie e a digital. O título da biografia é uma indicação do quanto McLuhan foi incompreendido (ele era menosprezado como evangelista, mais do que um cronista da mídia moderna) e um sinal de que o livro não pretende ser levado muito a sério; deriva de um fragmento de diálogo extraído de uma breve aparição de McLuhan no filme de Woody Allen, Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de 1977.

Coupland, um canadense que tem suas próprias lutas com o ruído e é uma espécie de faz-tudo (designer completo e artista, além de romancista, jornalista e documentarista), considera ter uma grande afinidade com McLuhan e compartilha com o ele o prazer de encontrar significados no que é tido como marginal. O texto principal do livro é entrecortado por fragmentos encontrados na internet, um teste de autismo e listas que podem ou não esclarecer as páginas seguintes. Achei isso enigmático, mas comecei a pensar que tentar decifrar o que estava na minha frente fazia parte da conversa que Coupland tentava manter com o leitor, através do prisma da biografia de um homem que amava trocadilhos e charadas.

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Além da seu papel como visionário, McLuhan era incontestavelmente doente, e quando a fama e a enfermidade começaram a tomar conta dele, caiu na paródia que sugeria que ele acabara intoxicado com sua prosa autorreferente. Considerado por alguns como o primeiro erudito da mídia moderna, ele foi capaz de um pensamento hermético incrivelmente arcaico.

No texto de Coupland, fica claro que McLuhan considerava as mulheres acessórios dos homens. Ele nunca tomou partido durante a Segunda Guerra Mundial e, nos últimos anos de vida, não compreendeu que estavam ocorrendo revoluções que iam além da mídia.

Em 1967, uma espécie de idade do ouro da literatura afro-americana e época de uma crescente consciência negra, ele escreveu como se estivesse falando de uma forma de vida alienígena: “O negro se liga graças à eletricidade. A antiga educação nunca o ligou porque ela rejeitava e degradava o negro, mas a eletricidade o liga e o aceita totalmente como ser humano integral”. Como entender isto?

Esburacado. Como muitos dos admiradores de McLuhan, Coupland concorda, mas depois faz vista grossa para os pequenos sofismas e manias ao alçá-lo ao panteão, escrevendo que “se Marshall não tivesse nascido, haveria um buraco no mundo. Haveria um buraco no céu; haveria um buraco no paraíso”.

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Grande parte do que McLuhan escreveu e parte do que Coupland relata estão além da minha compreensão, não entendo nada desse papo de “buraco no paraíso”. É uma hipérbole, mas há algo tão inocente nesta descrição, tão despretensioso em sua total admiração por um pensador incrivelmente complicado, que o leitor se sentirá propenso a dar um desconto a Coupland – vai deixar passar.

McLuhan talvez não aprovasse – seu gosto em matéria de literatura tendia para punir explicações para uso particular – mas indubitavelmente teria compreendido. “A arte é tudo o que você deixa passar”, escreveu.

/TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

—- Leia mais:O século McLuhanA aldeia global encolheu‘Link’ no papel – 31/01/2011

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