A pandemia fez com que os esforços em saúde se concentrassem no tratamento de pessoas com covid-19, levando à suspensão de outros atendimentos. As filas de consultas, exames e procedimentos, que já eram grandes no Sistema Único de Saúde (SUS), ficaram maiores. Mas algumas lições aprendidas no período mais crítico podem ajudar a dar conta dos desafios atuais.
Para Eloisa Bonfá, diretora clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), um aprendizado importante foi a hierarquização de atendimentos. “A atenção primária vai ter de se reorganizar. As filas precisam ser de outra forma, não podem ser como as de supermercado, que é atendido quem chegou primeiro.” Ela ressalta que não se trata de deixar pessoas sem atendimento, mas de encaminhar paciente certo para o lugar certo. “Só entrava nas nossas UTIs paciente gravíssimo”, cita Eloísa.
Outra forma de dar celeridade aos atendimentos na fila é usar a tecnologia. “Telemedicina é um ponto nevrálgico, mas tem de ser estudado para ser bem aplicado. Ainda é complicado fazer um diagnóstico de pneumonia sem auscultar”, afirma Sérgio Cimerman, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia, sobre situações em que um “exame físico minucioso” é necessário. A adoção ampla da telemedicina esbarra ainda em fatores estruturais.
“Alguns hospitais usaram telemedicina, mas outros não têm acesso à internet”, diz Gonzalo Vecina, médico sanitarista, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Segundo ele, o subfinanciamento do SUS provoca ainda a falta de materiais básicos para o atendimento, algo bem claro na pandemia. “As unidades sanitárias não tinham oxímetro, muitas não têm oxigênio. É um problema estrutural. A sociedade e os conselhos de saúde têm que se posicionar e exigir dos políticos.”
Fatos e informação sobre covid-19
Na luta contra a covid-19, mais do que nunca os profissionais da saúde perceberam a importância de a população ter acesso a informação séria. “As fake news jogam a sociedade contra a comunidade científica”, afirma Cimerman, que teve colegas ameaçados de morte por publicarem evidências contra a cloroquina. A situação mostrou que parte da função do médico é explicar os fatos.
“Contra a desinformação, a resposta é informar. Temos de ter a disposição de falar”, diz Vecina. Neste momento em que a pandemia desacelera – e se espera que continue assim até a chegada de uma vacina eficaz –, a confiança nas equipes de saúde é essencial para que as pessoas se sintam seguras para procurar atendimento. “A maioria dos hospitais já está preparada e tem todas as condições de atender com segurança”, diz Eloísa.
Ter confiança, contudo, não implica em deixar de se cuidar. Embora a ocupação das UTIs esteja em queda, é cedo para baixar a guarda, salienta Anna Miethke Morais, vice-coordenadora de Gestão Assistencial Corporativa do HC. “Continuamos em estado de muita atenção. Os leitos de UTI destinados à covid estão disponíveis para serem usados se houver necessidade. A pandemia não acabou.”
Depoimento de médico do Sírio-Libanês sobre convênio com HC
Daniel Neves Forte, gerente de Humanização e Cuidados Paliativos do hospital, conta como montou estrtura e treinou equipe:
“No começo de março, o Sírio recebeu muitos casos graves de covid-19, um desafio imenso. Um mês depois, a tensão era grande, mas já tínhamos achado um caminho para lidar com a demanda, cuidar dos pacientes. Só que em abril os casos no SUS começaram a crescer, e recebemos um pedido de ajuda do Hospital das Clínicas. O HC é muito potente, se precisava de ajuda, a gente não tinha como ignorar. Cuidar de quem precisa faz parte do propósito da instituição, de cada profissional de saúde. O HC precisava abrir leitos de UTI. Sou médico intensivista, que acabei indo para cuidados paliativos, mas tinha uma sensação de que estávamos numa guerra. Meu lugar só podia ser no front.
Em dez dias a gente fez tudo, desde a parte jurídica do convênio entre Sírio e HC, até a contratação de equipe, levar caminhões com camas e respiradores. Treinamos 1.018 profissionais de enfermagem. Eu trabalhava 16 horas por dia. Tive de escrever protocolos detalhados. Antes de começar a receber os primeiros pacientes, a gente juntou todas as equipes. Vi o medo nos olhos das pessoas. Falei que íamos presenciar muitas mortes, sofrimento, dor. Mas que estávamos juntos.
Aprendi que tem algo muito maior que nos une. Não importa se trabalho no local A ou B, escolhi cuidar de pacientes. Nenhuma instituição é uma ilha; se não sairmos da situação todos, ninguém vai sair sozinho.”
Referência no enfrentamento da covid-19: Taiwan
Quando o assunto é covid-19, Taiwan é referência mundial. Apesar do fluxo de pessoas com o território principal da China, a ilha acumula só sete mortes e menos de 600 casos, em 24 milhões de habitantes. Desde abril não houve mais transmissão local. Tecnologia e ações rápidas do governo, ajudados pela geográfica, explicam o sucesso.
Segundo o embaixador de Taiwan no Brasil, Tsung-Che Chang, embora nem tudo possa ser replicado em outros países, algumas medidas são baratas e eficazes. “O sabão é a melhor tecnologia para controlar o coronavírus”, diz. Máscaras a um preço acessível para toda a população têm sido um trunfo tão importante que o ministério da saúde local as chama de “vacina física”.
Mas Taiwan também investe em tecnologia de ponta. Os dados de saúde de todos os moradores são armazenados por um sistema central, fazendo com que o médico tenha acesso aos históricos e possa identificar melhor casos suspeitos. Para evitar a propagação, todos que entram no país cumprem uma quarentena de 14 dias. São monitorados para evitar que saiam, mas recebem ajuda de custo e logística para o período. Chang garante, contudo, que mais do que monitoramentos ou multas, o importante é o governo educar a população.
A ilha chinesa elege governantes, tem sistema capitalista e emite a própria moeda. Ainda assim, é um país sem total legitimidade e não faz parte da Organização Mundial da Saúde (OMS).
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