Caro leitor,
em 24 de junho de 1997, o cabo Valério dos Santos Oliveira foi morto com um tiro em frente ao Comando da PM, em Belo Horizonte. O sangue na frente do quartel era o testemunho da irresponsabilidade de coronéis. Garantiram com o governador Eduardo Azeredo (PSDB) o reajuste de seus salários e se esqueceram dos praças. A esperteza dos comandantes custou caro. A sociedade enfrentou a greve da polícia e o caos na segurança. A polícia viu esgarçar a união entre oficiais e graduados, com um motim que terminou em morte e centenas de prisões. Por fim, o governador perdeu a reeleição.
Vinte e cinco anos depois, a leniência arma outra bomba em Minas. Primeiro, os deputados estaduais aprovaram mais um incentivo ao caos e à baderna: uma anistia aos amotinados que foram excluídos da corporação em 1997. Há formas legais de se corrigir injustiças nos quartéis. Um militar que se amotina, cobre o rosto com máscaras e afronta o comandante ou está disposto a tomar o poder ou é um baderneiro. Rasga o regulamento disciplinar, afronta a honra profissional e trai a sociedade que jurou servir e proteger. É pouco mais que um miliciano. De armas nas mãos, quer assaltar o Erário em nome do próprio bem-estar.
Na última reforma da Previdência, os militares estaduais pegaram carona com os colegas das Forças Armadas e mantiveram a integralidade e a paridade das aposentadorias em relação ao serviço ativo. Os generais tiveram ainda reajuste que chegou a 41% dos vencimentos, o mesmo índice que o governador Romeu Zema prometeu aos PMs, em fevereiro de 2020. O único governador do partido Novo seguiu os passos de Azeredo. Se o tucano caiu no conto de que era possível reajustar oficiais e deixar os praças à míngua, Zema se deixou levar pela lógica do corporativismo militar, identificado com o bolsonarismo.
O governador fez a promessa aos policiais antes mesmo de conseguir aprovar na Assembleia Legislativa a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), quando o Estado teria então condições de, segundo Zema. "aplicar a recomposição da inflação nos salários de todas as categorias do funcionalismo público, e dar continuidade ao pagamento das dívidas herdadas, como os repasses para os municípios e os depósitos judiciais". É natural que os governantes queiram se reeleger. Mas prometer o que não se tem como pagar à gente armada não parece boa ideia.
Zema pode dizer que, ao fazer, em 2020, a promessa que lhe cobram, o coronavírus ainda não havia desembarcado no País, nem Bolsonaro congelado os aumentos salariais do funcionalismo público. Mas já naquele tempo, a decisão de Zema não dizia respeito somente aos mineiros. Ela espalhou pelo País o temor de que policiais se amotinassem para extrair o mesmo de seus governadores, em movimentos como o do Ceará, ondelideranças bolsonaristas promoveram comícios em quartéis e estimularam desordens para pôr os cofres públicos à disposição de colegas mascarados que deixaram a população à mercê do crime. Agora, especialistas em segurança voltam a temer que o movimento em Minas reacenda a onda de motins no País, com os apoios de sempre.
Bolsonaro teria dado o sinal ao pressionar o Congresso por aumento para os policiais federais e ao recuar diante da ameaça de paralisação de todo o funcionalismo público. Em Minas, os policiais resolveram cobrar de Zema a promessa feita lá atrás. Marcaram protestos hoje em Belo Horizonte e em várias cidades do Estado. Esperam a adesão de 10 mil a 20 mil pessoas aos atos contra o governador. E o que fez o comandante da PM diante da ameaça de badernas e desordens? O coronel Rodrigo Sousa Rodrigues liberou, no sábado, a participação de militares da ativa nas manifestações contra o chefe.
Justificou-se o coronel afirmando que o protesto contra Zema – o governador – é "evento legítimo". Em uma carta de 27 linhas endereçada à tropa, o comandante diz estar "engajado na defesa dos interesses e direitos da corporação". Diante da indisciplina armada, limitou-se a augurar que "nenhuma ação retire o brilho do respaldo que a nossa instituição conquistou até hoje". A esperteza de Zema cresceu e foi parar na mesa do coronel. "Continuaremos em franca negociação com o governo do Estado, que já reconheceu nossas perdas inflacionárias e busca soluções para a remuneração." Rodrigues concluiu com um desejo: "Que Deus nos abençoe".
O coronel sabe o que faz. Não está sozinho na empreitada. Há três meses, seus subordinados receberam mais um incentivo à baderna: o projeto que aprovou a leniência com os amotinados do passado. A Assembleia Legislativa de Minas anistiou os arruaceiros de 1997. Cento e oitenta e seis deles haviam sido expulsos após conselho de disciplina – uma parcela ínfima diante dos 1.759 indiciados no Inquérito Policial-Militar (IPM). Ou seja, em Minas os políticos tratam os PMs como civis quando lhes interessam ter o direito de greve reconhecido e como militares quando o que está em jogo são as suas aposentadorias.
Mas ou bem se é militar ou bem se é civil. Como fazer com que os coronéis que se dizem dispostos ao sacrifício da própria vida não sejam vistos pelos críticos como integrantes de um grupo que espeta a conta de seu privilégio e de seus interesses acima do bem-estar comum, esse ideal tão esquecido na República? Muitos apontam para outras corporações, como juízes e promotores, como se o privilégio de uns justificasse o de outros. Ninguém parece entender que o serviço público não deve ser causa de enriquecimento. Responsabilidade fiscal não é coisa que se aplique só às professoras, aos enfermeiros e às faxineiras.
O País assiste ao espetáculo de um comandante que, diante do desafio da manutenção da ordem, limita-se a emitir notas em que pede a bênção de Deus. Onde o comando não tem mais voz ou se recusa a tê-la, resta encenar a esperança na Graça divina e esquecer o que os homens devem e não querem fazer. Mas as estrelas nos ombros dos coronéis não estão nos céus, mas na terra. É ali que o exercício da autoridade inspira o subordinado, tranquiliza a sociedade e protege o cidadão. Tancredo Neves conhecia bem os atores dessa encenação. E advertia: "Esperteza quando é muita, come o dono".
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