É difícil superestimar o quão surpreendente foi a incursão ucraniana na região russa de Kursk. Que os russos foram pegos de surpresa é evidente pela ausência de uma resposta coordenada e pela profundidade do avanço: 40 km dentro da Rússia. Mesmo os aliados declararam que não sabiam da operação, mas endossaram sua legitimidade. Foi o maior ganho territorial desde a contraofensiva ucraniana no outono de 2022, e a primeira vez que a Rússia foi invadida desde a 2.ª Guerra Mundial. Se os resultados também serão surpreendentes, é uma questão completamente diferente.
Os ucranianos mantêm segredo sobre os detalhes da manobra e seus objetivos. O mais imediato parece ser o de forçar o deslocamento de tropas russas das frentes na Ucrânia. Esse efeito, do que se sabe, foi limitado. A Rússia deslocou algumas tropas de Kharkiv, mas mantém as posições no Donbass, um sinal de que não há expectativa de que os ucranianos continuarão penetrando o território russo. De todo modo, o ataque expôs uma vulnerabilidade russa, suas amplas fronteiras, e obriga o Kremlin a estar em guarda para defendê-las de incursões similares em outros lugares.
Um outro objetivo pode estar relacionado a um elemento menos tangível, mas crucial: o moral. O dos ucranianos estava abalado desde que os russos bloquearam sua contraofensiva. Segundo pesquisas, a maioria dos ucranianos ainda apoia a luta para recuperar todos os territórios perdidos desde 2014, mas o número dos dispostos a negociar terras por paz tem crescido.
Não se pode vencer uma guerra só na defensiva. As forças ucranianas mostraram que podem tomar a iniciativa, ludibriar a inteligência russa e infligir uma humilhação considerável ao Kremlin. Os russos vinham lutando na Ucrânia como se o seu território fosse inviolável. Isso mudou. “Eles estão sentindo o que nós estamos sentindo há anos, desde 2014″, disse um militar ucraniano à revista The Economist.
Desde o começo da guerra, Vladimir Putin tem riscado o chão com linhas vermelhas imaginárias tentando segurar a mão dos aliados dos ucranianos com ameaças de uma escalada nuclear. Parte do efeito pretendido pelos ucranianos pode ser o de expor a falácia desses argumentos.
O objetivo russo tem sido prolongar uma guerra de atrito para depauperar a Ucrânia e provocar a fadiga do apoio ocidental. A incursão abala essa narrativa de uma inevitabilidade militar russa. As cartas foram momentaneamente embaralhadas, mas até que ponto a operação será capaz de mudar o jogo, dependerá dos objetivos estratégicos dos ucranianos e da sua capacidade de conquistá-los. Por ora, nem uma coisa nem outra são claras.
Recentemente, em entrevista à BBC, o presidente ucraniano deu sinais de uma abertura a negociações. “Não precisamos recapturar todos os territórios” por meios militares. “Isso também pode ser conquistado por meio da diplomacia.” O objetivo da operação pode ser mudar não só a narrativa na zona de guerra, mas na mesa de negociações. Ao invés da oferta de Putin de trocar “terras por paz”, uma outra oferta: “terras por terras”.
Mas isso dependeria da capacidade dos ucranianos de manter os territórios russos. No momento, não é claro se esse é o objetivo nem se Kiev tem essa capacidade. Seria uma aposta arriscada. Os ucranianos enfrentam limitações de recursos, homens e armas, e deslocá-los da frente em casa para ocupar um território fora pode custar caro. A única serventia dessa estratégia seria a de persuadir os aliados a enviar os recursos e armas de que a Ucrânia precisa. Nesse caso, os ganhos compensariam os riscos, e os rumos da guerra poderiam efetivamente mudar.
O futuro dirá se o ataque foi um ponto de virada, inspirando os aliados ocidentais a armar a Ucrânia para mostrar que ditadores não podem violar fronteiras soberanas impunemente, ou se foi o último golpe ucraniano antes da capitulação – ou talvez nenhuma das duas coisas. Na névoa da guerra, todas essas possibilidades estão abertas. Por ora, os amantes da justiça podem se comprazer com o revés da tirania de Putin.