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A armadilha das cotas identitárias

Ao criar cotas para pessoas trans, travestis e não binárias, Unicamp pratica um ato de arbítrio que só atrapalha os esforços para combater desigualdades e estabelecer o equilíbrio social

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Por Notas & Informações
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A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) acaba de criar um sistema de cotas para ingresso de pessoas que se autodeclaram trans, travestis ou não binárias em seus cursos de graduação. De acordo com a universidade paulista, cursos com até 30 vagas disponíveis deverão reservar ao menos uma – regular ou adicional – para essa parcela da população. A cota aumenta para duas vagas no caso de cursos que têm turmas com mais de 30 alunos.

Ainda segundo a Unicamp, poderão ingressar na graduação por meio dessa “política de ação afirmativa” os alunos das redes pública e privada que prestarem o Exame Nacional do Ensino Médio e apresentarem um “relato de vida”, um documento no qual os candidatos devem descrever sua “trajetória de transição” e o “processo de afirmação da identidade de gênero”. O que isso significa e segundo quais critérios um dado “relato de vida” haverá de preponderar sobre os demais, só os doutos membros das comissões avaliadoras da Unicamp hão de saber – o que autoriza a suspeita de que a seleção não está imune, ora vejam, ao arbítrio e ao preconceito.

Por mais problemática que seja, a vagueza de critérios ainda é o erro mais banal de um sistema de cotas que já nasce eivado de vícios. Para começar, trata-se de uma inequívoca violação do princípio republicano elementar, consagrado no caput do artigo 5.º da Constituição: a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O respeito aos direitos e a atenção aos interesses de minorias se impõem para qualquer sociedade civilizada. Mas isso não significa, por óbvio, sacrificar a ordem constitucional vigente no altar das boas intenções.

Ninguém sensato, minimamente cioso da realidade do país em que vive, haverá de negar que a população LGBTQIA+ tem direitos de toda ordem violados em um país tão desigual como o Brasil. As adversidades enfrentadas por pessoas trans, travestis e não binárias, em particular, têm impactos diretos em sua integridade física e emocional. Decerto também contribuem para que esses brasileiros tenham, em geral, menos acesso a empregos qualificados que lhes permitam auferir uma renda capaz de custear uma formação educacional mais sólida.

Dito isso, se é no campo das reparações sociais que estamos transitando, por que fixar um sistema de cotas para ingresso no ensino superior para pessoas trans, travestis ou não binárias e não para mães adolescentes e solteiras, para citar apenas um exemplo de grupo vulnerável presente em todo este vastíssimo país? E daí em diante. O céu é o limite para os que se arvoram em reparadores sociais, no cenário mais benevolente, ou justiceiros morais, no pior.

Como a própria Unicamp reconhece, no Brasil não se tem a exata dimensão da população composta por trans, travestis e não binários. Portanto, a criação de cotas para esse segmento é, ao fim e ao cabo, uma decisão arbitrária que privilegia um determinado grupo em detrimento de tantos outros. Também não estão claras – vale dizer, acima de quaisquer dúvidas – quais seriam as barreiras sistemáticas impostas à população LGBTQIA+ para ingresso no ensino superior, tais como as enfrentadas, historicamente, por pretos, pardos e indígenas.

Os mais de dez anos de vigência da chamada Lei de Cotas demonstram que, de fato, esse marco jurídico foi determinante para amenizar desigualdades entre os brasileiros. Mas o tem feito, como já sublinhamos nesta página, de modo artificial e paliativo. Muito mais coadunada com a realidade do País seria a massificação das cotas sociais para ingresso no ensino superior, sem distinções além da objetividade do critério da renda familiar.

Por fim, essa discussão seria absolutamente ociosa se o Brasil tratasse como prioridade inegociável o desenvolvimento da educação básica para todos. Mas, enquanto isso não passar de um desejo, o sistema de cotas seguirá necessário por tempo indeterminado e, consequentemente, dará azo a cada vez mais distorções, além de estimular discursos extremistas que interditam o debate racional e honesto sobre essa ou qualquer outra questão de interesse público.

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