O conhecimento das chamadas “rachadinhas” – alcunha que transmite uma ideia de brandura para um crime que, na realidade, é muito grave – ganhou amplitude nacional após o Estadão revelar, no fim de 2018, que a família do presidente Jair Bolsonaro era useira e vezeira desse esquema de apropriação ilegal de parte dos salários de servidores lotados em gabinetes de políticos do Legislativo e do Executivo. A prática, no entanto, é antiga e “meio comum”, como o próprio presidente da República fez questão de admitir durante uma entrevista concedida em agosto passado.
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), acaba de homologar um Acordo de Não Persecução Criminal (ANPC) com o deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM), acusado de praticar “rachadinhas” no seu gabinete na Câmara dos Deputados entre janeiro de 2000 e dezembro de 2001. Passaram-se 12 anos desde o recebimento da denúncia, em dezembro de 2010, até que a instância máxima do Poder Judiciário, enfim, resolvesse punir o parlamentar pelo crime. E ainda assim na undécima hora e com bastante benevolência.
No dia 1.º de dezembro, faltando apenas 24 horas para a prescrição do caso, o ministro Barroso homologou os termos do ANPC com Silas Câmara, no qual o deputado confessa a prática do crime de peculato (art. 312 do Código Penal), que até então ele sempre negara, e se compromete a pagar uma multa de R$ 242 mil. Por incrível que pareça, embora o acordo tenha saído barato para o parlamentar, essa módica quantia diante da gravidade do delito é alguma forma de compensação à sociedade. O ANPC foi proposto, homologado e assinado um dia antes da prescrição do crime. Ou seja, por muito pouco Silas Câmara não passou totalmente impune.
O próprio ministro Barroso reconheceu que nem sequer caberia a celebração do ANPC na fase em que se encontrava o processo contra o parlamentar no STF, haja vista que esse tipo de acordo é oportuno apenas na fase pré-processual, ou seja, antes da aceitação da denúncia oferecida pelo Ministério Público à Justiça. No entanto, o magistrado admitiu que, diante da iminência da prescrição do crime, a celebração do ANPC era “a via mais adequada para minimizar os prejuízos ao erário”.
Essa extrema lentidão da Justiça para punir o crime e a naturalidade com que ninguém menos do que o presidente da República, ele mesmo um dos implicados, admite que “essa coisa de rachadinha é meio comum” são sintomas de que o País trata a prática como algo banal, uma espécie de pecadilho inerente à própria atividade política, algo aceitável, portanto. Ora, “rachadinha” é inaceitável. E é espantoso que assim não seja vista.
Em que pese a dificuldade de tipificar a conduta delitiva – o Código Penal não descreve exatamente um crime de “rachadinha” –, a apropriação de parte dos salários de servidores lotados em gabinetes sobretudo de parlamentares é, inequivocamente, uma prática grave: é desvio de recursos públicos e forma de enriquecimento ilícito.
Ademais, o parlamentar que nomeia para o seu gabinete funcionários desqualificados para as funções de assessoria, gente que aceita participar do esquema por alguns trocados sem trabalhar, mostra que seu objetivo não é trabalhar por seus eleitores, e sim aproveitar-se das nomeações para engordar a conta bancária.
O caso envolvendo o deputado Silas Câmara levou mais de 20 anos para ter alguma punição. Tal procrastinação é exatamente o que buscam os que não conseguem responder às acusações de “rachadinha”, como os enrolados integrantes do clã Bolsonaro. Até agora, eles têm se valido de filigranas jurídicas para suspender ou atrasar o andamento dos processos que correm contra eles na Justiça, em que pese a profusão de indícios de enriquecimento ilícito – pagamentos sistemáticos de contas em dinheiro vivo, compra de dezenas de imóveis em espécie e cheques inexplicáveis depositados na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, só para citar os mais evidentes.
Do Legislativo e do Executivo, obviamente, seria ocioso esperar medidas que ponham fim às “rachadinhas”. Cabe ao Judiciário sistematizar a punição de um crime que, como dito, representa a transformação da representação parlamentar em negócio privado.