A isonomia é o pilar fundamental da República: todos são iguais perante a lei. Portanto, era antirrepublicana e inconstitucional a isenção tributária sobre a remuneração paga por igrejas a seus pastores, ministros e demais lideranças religiosas, conhecida como prebenda. No dia 17 passado, o secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, revogou o privilégio, generosamente concedido aos religiosos pelo governo de Jair Bolsonaro.
Ainda que tardia, a decisão do Fisco foi correta. À esmagadora maioria dos cidadãos, sejam religiosos ou ateus, jamais foi dada a mais remota chance de escapar da incidência de impostos sobre seus vencimentos. Por que razão, então, pastores e demais lideranças religiosas haveriam de ser agraciados com essa regalia? A pergunta, claro, é retórica. Como registra a história recente do País, essa cortesia com o chapéu do contribuinte quase sempre se prestou a propósitos político-eleitorais, em particular à cooptação dos evangélicos, segmento populacional cada vez mais organizado e representado no Congresso.
A isenção da contribuição previdenciária sobre as prebendas fora concedida pela Receita Federal às vésperas da campanha eleitoral de 2022. Era do interesse do então presidente Jair Bolsonaro consolidar o apoio de lideranças evangélicas à sua tentativa de reeleição. O refresco financeiro foi um dos mecanismos encontrados por Bolsonaro para manter os evangélicos fiéis a ele, e não à Constituição. O ex-presidente ainda defendeu abertamente não só a anistia de multas bilionárias aplicadas às igrejas que não recolheram a contribuição previdenciária, como pressionou o Fisco pela isenção do pagamento de outras contribuições, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
O pagamento dessas contribuições não tem relação com a imunidade tributária conferida pela Constituição às entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes. O dispositivo constitucional se presta à garantia da liberdade religiosa no País, de modo a evitar que uma denominação religiosa seja impedida de oferecer conforto espiritual a seus fiéis por falta de dinheiro para pagar impostos relativos a seus locais de culto e obra missionária.
Já os líderes religiosos não são cidadãos mais especiais do que outros para serem agraciados com uma isenção tributária sobre seus vencimentos, seja lá o nome que venham a ter – salário, côngrua, prebenda ou ajuda de custo.
Embora tenha feito a coisa certa, é forçoso notar que o governo do presidente Lula da Silva foi lento para reconhecer algo cristalino como a imoralidade da isenção fiscal aos religiosos, talvez temendo a reação política que decerto viria. Ignorou o quanto pôde um alerta dado pela própria Receita Federal, em março do ano passado. Ao que tudo indica, só resolveu agir depois de novo alerta, agora disparado pelo Tribunal de Contas da União, por meio de seu corpo técnico, apontando indícios de irregularidades e improbidade administrativa na concessão do benefício durante o governo de Jair Bolsonaro. Seja como for, o fato é que esse privilégio não se coadunava com o mais elementar dos princípios republicanos e, também, religiosos – basta lembrar o ensinamento de Cristo sobre a obrigação de pagar impostos (Mateus 22:17-21).
Como não haveria de ser diferente, parlamentares da bancada evangélica e lideranças religiosas do segmento vieram a público contestar em termos veementes o fim da regalia. O deputado Eli Borges (PL-TO) acusou o governo de “sacerdofobia”. Para seu colega Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), foi “safadeza”.
É absolutamente legítimo que os evangélicos, como quaisquer outros grupos sociais, religiosos ou não, se organizem politicamente para defender seus interesses no Congresso. Outra coisa, muito distinta, é seus líderes aproveitarem essa grande capacidade de mobilização para desvirtuar a representação política, fazendo uso dela para obter um tratamento diferente do que é dado pelo Estado aos demais cidadãos. Isso é manipulação da fé.