Nada evidencia mais o patrimonialismo, o corporativismo e o clientelismo entranhados no Poder Público quanto a tramitação da reforma administrativa. A proposta do governo foi tardia e limitada. As piores distorções não foram enfrentadas. Na Câmara, entre a desarticulação do Planalto e as pressões corporativas, os poucos pontos positivos foram dilapidados, avanços históricos foram revertidos e novas distorções foram criadas. O texto final relatado pelo deputado Arthur Maia (DEM-BA) é uma verdadeira contrarreforma.
Uma boa administração deve prosperar em uma cultura de liderança orientada pelo espírito público, manifesto em valores como imparcialidade, proatividade e inovação. Deve ser eficaz e confiável, premiando o esforço, o talento e a iniciativa. E deve ser flexível e adaptável às transformações sociais, por meio de canais transparentes e abertos de diálogo entre servidores e servidos. As demandas excepcionais ao Poder Público suscitadas pela crise pandêmica escancararam o abismo entre esse ideal e a realidade.
O Estado brasileiro gasta muito e gasta mal. Os servidores têm mais benefícios que seus pares na iniciativa privada, e no próprio funcionalismo a desigualdade entre a elite e as bases é maior do que no mercado privado. Os incentivos à produtividade e os prêmios ao mérito são escassos e viciados. O resultado é uma máquina de gerar desigualdades, custosa, ineficiente e vista com desconfiança pelo cidadão comum, o que desencadeia um ciclo vicioso de vilanização dos servidores, retroalimentado pela sua vitimização.
Desde o início, as promessas do governo eram limitadas ao liberalismo de fancaria do ministro da Economia, Paulo Guedes. Cortar gastos, reduzir quadros excessivos e eliminar privilégios são condições necessárias para sanear a administração, mas não são suficientes nem as mais importantes para modernizá-la.
Mesmo esses objetivos, contudo, se perderam. O presidente Jair Bolsonaro, historicamente ligado aos interesses do funcionalismo, nunca se empenhou em aprovar as propostas de seu Ministério da Economia e manobrou para privilegiar suas bases, como as forças de segurança.
O texto final foi tão pervertido, que o Centro de Lideranças Públicas (CLP), que tem uma atuação consistente em prol da modernização do Estado e vinha subsidiando os parlamentares, considerou o projeto irremediável e retirou o apoio à reforma.
Entre as distorções, o CLP aponta a declaração de inconstitucionalidade de qualquer emenda que inclua membros da Justiça, justamente os que mais acumulam privilégios. O texto também abre brechas constitucionais para burlar a lei de supersalários. Se a matéria for aprovada, a avaliação de desempenho, que poderia ser regulada com mais agilidade e flexibilidade por leis ordinárias, será constitucionalizada. Ao mesmo tempo, as regras propostas inviabilizam o desligamento por insuficiência, já que ela seria julgada no interior das corporações. O único gatilho fiscal da reforma, o mecanismo de redução de jornada e remuneração por adesão voluntária, foi eliminado.
Mais escandalosos são os afagos às forças de segurança: não só foram restaurados antigos privilégios eliminados na reforma da Previdência, como foram criados novos, como o foro especial para delegados; a inclusão das guardas municipais e polícias legislativas no rol de carreiras exclusivas de Estado; a nova pensão por morte; ou a retirada da cassação de aposentadoria como sanção administrativa.
Como constatou o presidente do CLP, Luiz Felipe d’Avila: “As mudanças só têm um sentido: melar a reforma. Eles não querem fazer a reforma, então fazem um parecer absurdo, que é óbvio que vai ser derrubado. E, se for aprovado, é um enorme problema para o País, que já gasta 13% do PIB com máquina pública e vai gastar ainda mais”.
O monstrengo gestado pelas bases parlamentares governistas agravará o quadro fiscal, prejudicará a eficiência dos serviços e degradará a moralidade pública. A conclusão é incontornável: “O meu resumo”, disse D’Avila, “é que esse parecer tem de ser jogado na lata de lixo”.