O século 21 nasceu com imensos desafios existenciais: um mundo multipolarizado após a bipolaridade da guerra fria; uma população que, após crescer vertiginosamente, está se estagnando e envelhecendo; as mudanças climáticas; a quarta revolução industrial; ondas migratórias; o terrorismo e as organizações criminosas; a proliferação nuclear; a fome, a miséria, as violações dos direitos humanos; as tensões entre países ricos e pobres, democráticos e autocráticos, ocidentais e orientais.
Por quase 80 anos, a Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas foi o principal fórum onde as lideranças internacionais se uniam para deliberar sobre esses e outros desafios. Paradoxalmente, quando essa união é necessária como nunca, a Assembleia de 2023 esteve esvaziada como nunca.
A ausência de quatro dos cinco líderes do Conselho de Segurança fala por si. Após invadir a Ucrânia, o russo Vladimir Putin se entrincheirou no Kremlin. Por um paradoxo aparente, num momento em que a China intensifica suas investidas diplomáticas, buscando liderar o Sul Global e reformular a ordem internacional, Xi Jinping foi também uma ausência ilustre. Mais surpreendente foi a falta, impensável há poucos anos, dos líderes da França e do Reino Unido. Só o americano Joe Biden marcou presença – de resto incontornável, dado que a Assembleia acontece em Nova York.
A crise de identidade da ONU tem raízes estruturais. “Suas estruturas mudaram pouco desde 1945. Paradoxalmente, sua tendência congênita à inclusão gerou disparidades ainda não sanadas. Cada voto dos 193 membros da Assembleia-Geral vale o mesmo – o da Índia (1,4 bilhão de pessoas) tanto quanto o de Tuvalu (12 mil)”, notou este jornal nos 75 anos da ONU, em 2020. “Suas distorções representativas, sobrecarregadas por uma burocracia exasperante, obstruem a meritocracia e a defesa dos direitos humanos contra a ilegalidade internacional, a miséria ou governos corruptos e cruéis” (ver o editorial A ONU aos 75 anos, de 24/6/2020).
O próprio Conselho de Segurança ilustra essas disfunções. Ele inclui só 8% dos membros da ONU. Os cinco permanentes com poder de veto são os mesmos que triunfaram na 2.ª Guerra, e não há representantes da América Latina, África, Oriente Médio ou Sul da Ásia.
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para 2030 não estão passando no teste da realidade e precisam ser hierarquizados e readequados a padrões mais pragmáticos. Instituições multilaterais, como o FMI, o Banco Mundial ou a OMC, têm sua legitimidade contestada e precisam urgentemente de reformas.
A apatia da ONU e órgãos multilaterais afins é, em parte, causa e sintoma dos novos dramas que intensificaram os desafios congênitos do século 21: os impactos da crise financeira de 2008 e a necessidade de prevenir outras, assim como as sequelas da covid-19 e a necessidade de prevenir outras pandemias; a desregulação de tecnologias com inacreditável poder de transformação e destruição, como a engenharia genética ou a inteligência artificial; a proliferação dos protecionismos; a polarização e a deterioração institucional nas democracias e o recrudescimento das autocracias; e os impactos socioeconômicos de um conflito na Europa com potencial de precipitar uma terceira guerra mundial.
Como o próprio secretário-geral da ONU, António Guterres, admitiu na Assembleia, o mundo mudou, mas as instituições internacionais não mantiveram o passo, potencialmente tornando-se parte do problema, e não da solução. “É reforma ou ruptura”, alertou.
Num mundo em que a tecnologia implode barreiras que separam a humanidade há milênios, um globalismo sadio – não as quimeras de um mundo sem fronteiras ou Estados nacionais que povoam os pesadelos de nacionalistas radicais ou os delírios de idealistas inconsistentes, mas o engajamento da humanidade, através da valorização e cooperação de suas nações, em interesses e obrigações comuns – é não só desejável, mas indispensável.
A ONU é, em tese, relevante como nunca. Mas se, na prática, as nações não concertarem fórmulas para rejuvenescê-la, o paradoxo é que ela caminhará para se tornar irrelevante como nunca.