A tragédia humanitária dos Yanomamis é chocante, mas não surpreendente. Sem dúvida, toda a sociedade brasileira precisa fazer um exame de consciência em relação ao abandono histórico dos povos originários. Mas surgem indícios de que o governo Jair Bolsonaro descumpriu deliberada e criminosamente suas obrigações legais para com os Yanomamis.
Desde 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito de uma ação relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso, vinha baixando decisões que obrigavam o governo a ampliar a proteção aos Yanomamis, incluindo um plano de expulsão de garimpeiros e madeireiros atuando ilegalmente na reserva e medidas de segurança sanitária e alimentar. Segundo nota do gabinete do relator emitida na última quinta-feira, 26, “as operações, sobretudo as mais recentes, não seguiram o planejamento aprovado pelo STF e ocorreram deficiências”. A Corte ainda “detectou descumprimento de determinações judiciais e indícios de prestação de informações falsas à Justiça”.
A presença de mineradores ilegais tem sido uma constante desde a remarcação do território, em 1992. O Ministério Público Federal (MPF) de Roraima já havia ajuizado em 2017 uma ação civil pública pleiteando a colocação de três bases etnoambientais da Funai nas reservas Yanomamis. Mas, mesmo após a sentença judicial, essas determinações nunca foram devidamente cumpridas. Com o enfraquecimento dos órgãos de apoio indígena e de combate aos crimes ambientais na gestão Jair Bolsonaro, o garimpo cresceu ainda mais.
Após as decisões do STF, um plano de atuação chegou a ser apresentado, mas nunca foi aplicado. “A linha de atuação do Ibama previa o combate nos rios e com o uso de aeronaves e poderia erradicar o garimpo em seis meses. Jamais foi aplicado”, disse ao Estadão Alisson Marugal, procurador da República em Roraima. “Muito pelo contrário, diversas vezes o Ibama em Brasília impediu que o plano fosse aplicado.” Segundo ele, “o governo fez operações para não funcionar”. Foram só três ciclos, com duração de cinco a dez dias, sobre apenas 9 dos 400 pontos de garimpo ilegal.
Começam a vir à tona também indícios de corrupção. Conforme reportou a Folha de S.Paulo, relatórios preliminares de uma operação da Funai realizada em 2019 apontam uma suposta relação próxima entre integrantes do Exército que atuavam em Roraima e o garimpo ilegal. Os relatos sugerem que militares do Sétimo Batalhão de Infantaria da Selva, muitos com relação de parentesco com os garimpeiros, vazavam informações de operações de combate à atividade ilegal e permitiam a circulação de ouro e droga mediante pagamento de propina. Os documentos também apontam para a atuação de integrantes do PCC no transporte de drogas e de minerais ilegais. A operação mapeou 3 pistas de pouso clandestinas, 14 clareiras abertas para pouso e decolagem de helicópteros, 36 garimpos, balsas ou acampamentos, 4 bordéis e 41 frequências de rádio utilizadas para comunicação. Mas, apesar de todas essas evidências, nada foi investigado.
A gestão de saúde da área Yanomami é investigada por desvio no uso de verba para a compra de remédios. O MPF suspeita que só 30% dos mais de 90 tipos de medicamentos fornecidos por uma das empresas contratadas pelo distrito sanitário indígena local, sob ingerência do Ministério da Saúde, teriam sido devidamente entregues. Segundo os procuradores, o desvio de medicamentos vermífugos, por exemplo, impossibilitou que 10 mil crianças, das cerca de 13 mil previstas, recebessem o tratamento devido.
Em 1998, o então deputado federal Jair Bolsonaro fez uma acusação às Forças Armadas: “A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”. Com a sua pusilanimidade característica, acrescentou: “Se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro”. Quem dera só pregasse e não fizesse. Mas omissão também é crime, e a dizimação a que os Yanomamis foram submetidos sob o seu governo não pode passar impune.