O governo Lula da Silva perdeu o pouco pudor que ainda mantinha na área fiscal e tem deixado cada vez mais claras as contradições entre o discurso e a prática no que diz respeito ao gasto público. Pululam exemplos de políticas que ignoram o arcabouço fiscal, a contabilidade pública e as consequências desses atos para a credibilidade do governo.
Em entrevista ao Estadão, o sócio-diretor da Gibraltar Consultoria, Marcos Lisboa, enumerou alguns dos truques fiscais a que o governo recorreu nas últimas semanas. Por meio da lei que prorrogou a desoneração da folha de pagamento de 17 setores e municípios, o Tesouro poderá contabilizar os recursos esquecidos em contas bancárias por correntistas como receita primária, como se o dinheiro fosse seu, para melhorar o resultado fiscal.
No anúncio do Gás para Todos, nova versão do Auxílio Gás, o Executivo disse que vai quadruplicar os gastos e ampliar o público atendido. Ao mesmo tempo, reduziu em 84% o valor reservado para o programa no ano que vem. A mágica se dará com a ajuda da Caixa Econômica Federal, que receberá a verba e fará a gestão e operacionalização do programa sem que o dinheiro precise passar pelo Orçamento.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já havia dado uma mãozinha ao governo ao reconhecer – corretamente – a inconstitucionalidade da emenda constitucional dos precatórios, por meio da qual a administração Jair Bolsonaro impôs um limite anual ao pagamento das dívidas. Com a decisão, o Executivo conseguiu regularizar os débitos, mas aproveitou para contabilizá-los no limite de despesas e sem considerá-los na apuração da meta, via créditos extraordinários.
Agora, o STF deu um passo além e, mais do que autorizar, o ministro Flávio Dino praticamente estimulou o governo a abrir créditos extraordinários no Orçamento por meio da decisão em que determinou a intensificação do combate a queimadas na Amazônia e no Pantanal.
O ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, elogiou a decisão “corajosa e necessária” de Dino. A ordem do ministro, no entanto, era desnecessária. Bastaria ao Executivo pedir autorização ao Congresso, como fez ao pedir crédito extraordinário para enfrentar as enchentes no Rio Grande do Sul.
Por óbvio, a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), considerou “justo” que essas ações sejam excluídas dos limites fiscais. É, para ela, o melhor dos mundos: gastar sem ter de cortar outras despesas ou aumentar a arrecadação, mantendo o discurso de que a meta será cumprida.
A questão é que isso não engana ninguém – ou quase ninguém. Marcos Lisboa enfatizou que o que importa, do ponto de vista fiscal, é o crescimento da dívida. O arcabouço e a meta, assim como as demais regras e leis que tratam da temática da contabilidade pública, são instrumentos criados para garantir que a dívida se mantenha estável na proporção do Produto Interno Bruto (PIB).
“Cumprir a meta dessa forma não diz muita coisa”, afirmou o economista. “Uma coisa não entra na despesa, outra sai da despesa primária. Se é isso, vamos esquecer o superávit primário, que está se tornando um guia pouco relevante para a preocupação principal, que é o aumento da dívida pública.”
O governo parece não compreender o sentido do arcabouço e da meta fiscal. Eles não são um fim em si mesmos. Cumpri-los, no curto prazo, é criar condições para que a dívida bruta pare de crescer no médio e longo prazos.
Se a dívida continuar a crescer, de nada adianta que o arcabouço e a meta tenham sido cumpridos. É prova de que ou eles não funcionaram como deveriam e que eram frouxos já de saída ou de que foram deturpados de forma a entregar um resultado que não condiz com a realidade dos fatos.
Tantas exceções e dribles reforçam a importância de perseguir o centro da meta fiscal, e não seu limite. A banda existe justamente para acomodar imprevistos, como deveria ter sido o caso das chuvas no Rio Grande do Sul. Quando o governo mira no esforço mínimo, precisa recorrer a artimanhas para defender seu cumprimento. Falta combinar com a dívida, mas o problema é que ela não mente.