A decisão da Comissão de Ética Pública da Presidência da República de liberar ministros do governo anterior para exercerem de imediato atividades na iniciativa privada expressa bem a ligeireza com que o bolsonarismo trata questões relativas a conflitos de interesse. Vislumbra-se grave confusão entre o público e o privado, que, longe de ser um assunto meramente teórico, representa descuido do Estado e da sua capacidade de atender ao interesse público. É o antiliberalismo em sua essência.
Segundo informou o Estadão, a Comissão de Ética, formada exclusivamente por indicados pelo então presidente Jair Bolsonaro, liberou da quarentena o ex-deputado Fábio Faria, que chefiava o Ministério das Comunicações, e Bruno Bianco, ex-advogado-geral da União. Os dois vão trabalhar no BTG Pactual. Consta que Fábio Faria irá para a área de Relações Institucionais. O banco é o principal acionista da V.tal, empresa de fibra óptica que detém a maior rede neutra do País e realiza negócios com grandes empresas de telecomunicações, como a TIM e a Oi. Na avaliação da Comissão de Ética, Fábio Faria não poderia trabalhar imediatamente apenas em empresas de telecomunicação e de radiodifusão. No caso de Bruno Bianco, o colegiado liberou o trabalho no banco sob a condição de “se abster, a qualquer tempo, de fazer uso de informação privilegiada”.
Marcelo Sampaio, ex-ministro da Infraestrutura, também foi liberado para trabalho imediato na iniciativa privada. Segundo o jornal apurou, foi convidado para trabalhar na Vale. No caso de Marcelo Sampaio, a Comissão de Ética admitiu que o ex-ministro da Infraestrutura teve “informações privilegiadas”, mas o liberava da quarentena sob o argumento de que haveria “impedimento do consulente a qualquer tempo, e não apenas nos seis meses posteriores ao desligamento do cargo público, de divulgar ou fazer uso de informações privilegiadas”.
Essas liberações imediatas são bastante questionáveis, em uma interpretação tão ampla da Lei 12.813/2013 que contrariam o propósito da própria lei – que dispõe sobre conflito de interesses e impedimentos posteriores ao exercício do cargo no Executivo federal. Segundo essa lei, a Comissão de Ética pode dispensar o cumprimento de período de impedimento somente se “verificada a inexistência de conflito de interesses ou sua irrelevância”. Não parece ser o caso das três liberações.
Ao mesmo tempo, a Comissão de Ética entendeu que dez ex-ministros do governo Bolsonaro, mesmo sem apresentarem proposta concreta de novo emprego, poderão continuar recebendo os respectivos salários até o final do primeiro semestre. Ao que parece, o colegiado vê a quarentena remunerada como uma espécie de benefício privado para quem passou por um cargo público, e não uma proteção do Estado, para assegurar que pessoas com informação privilegiada não trabalhem de imediato em áreas com potencial conflito de interesse.
Criada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a quarentena para ministros e autoridades do segundo escalão, incluindo diretores de empresas públicas, fundações e autarquias, foi um importante avanço institucional, como medida de proteção do interesse público. Titulares de cargos de confiança que deixam o governo passaram a ter de esperar por quatro meses – depois, o prazo foi ampliado para seis meses – antes de aceitarem empregos na iniciativa privada na área de atuação. No período, os profissionais continuam vinculados ao órgão em que estavam lotados e recebem um salário compensatório equivalente ao que tinham no exercício da antiga função.
Nas decisões da Comissão de Ética Pública da Presidência da República liberando o trabalho imediato, em vez da proteção da moralidade pública e da aplicação rigorosa da lei, há uma contundente defesa dos interesses das pessoas que estavam nos cargos públicos. Em vez de servir ao público, o Estado fica refém do privado. É mais um aspecto da destruição do Estado operada pelo bolsonarismo, cujo apregoado “liberalismo” não passava de lorota.