O gabinete de transição do governo eleito anunciou que o custo das medidas adotadas durante a gestão Jair Bolsonaro relacionadas ao setor elétrico devem atingir R$ 500 bilhões, rombo que deverá pressionar a conta de luz nos próximos anos. Parte desse ônus se deve ao plano para evitar um racionamento de energia e a um leilão realizado no ano passado para contratar usinas de forma emergencial a um preço elevado. Porém, a maior parte do prejuízo se deve a razões bem menos republicanas. Mais de R$ 420 bilhões se devem a emendas inusitadas e que foram incluídas na medida provisória que permitiu a privatização da Eletrobras, cuja aprovação pelo Congresso passou por intensa negociação com o governo.
Entre essas propostas, conhecidas no ambiente legislativo como jabutis, está a obrigação de contratação de termoelétricas em locais onde não há nem reservas de gás nem gasodutos, quase sempre no interior do País. Para viabilizá-las, seria necessário construir gasodutos para levar o insumo aos locais das usinas e linhas de transmissão para escoar a eletricidade de volta até os centros de consumo. Outra emenda criou uma reserva de mercado para pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), garantindo a elas que sejam selecionadas em licitações mesmo que os preços da energia sejam mais altos que os de fontes concorrentes.
Não é preciso ser um especialista no setor elétrico para perceber a falta de racionalidade dessas escolhas. O que fez com que elas fossem defendidas pelo Legislativo com tanto afinco, portanto, não foi a busca do mérito, da eficiência ou do interesse público, mas a facilidade com que o custo dessas medidas seria repassado ao consumidor. E essa dinâmica, é preciso reconhecer, foi exacerbada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, mas não foi criada por ele.
Suas raízes remontam a outra medida provisória, que tinha como objetivo reduzir as tarifas e criar uma bandeira eleitoral para a então presidente Dilma Rousseff, em 2012. A proposta não se sustentou no médio prazo, exigindo aportes bilionários do Tesouro e um reajuste de 50% em 2015, mas inaugurou uma lógica perversa que tem vigorado há anos: de uma só vez, a União se livrou das despesas com políticas públicas que tinha de arcar no Orçamento e repassou os custos dos subsídios que sustentavam o setor elétrico para as contas de luz.
Sob Bolsonaro, o Ministério de Minas e Energia cedeu seu espaço cativo como formulador de políticas públicas, e o Legislativo ganhou cada vez mais protagonismo ante o Executivo. Em vez de apresentar suas demandas ao governo, cada segmento passou a submetê-las diretamente aos parlamentares, prática que se mostrou bastante eficiente para assegurar a parte que lhe cabia no latifúndio dos subsídios. Para não melindrar deputados e senadores, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), abdicou de seu papel regulador e chegou a recusar-se a calcular o impacto de medidas discutidas no Congresso. O resultado é que o consumidor paga uma fatura cada vez mais cara sem nem saber o que e a quem, de fato, está financiando.
Para diminuir parcialmente esse potencial rombo de alcance bilionário, a equipe de transição do governo eleito recomendou a rescisão do contrato de algumas usinas e a reversão das leis que obrigam à compra de energia mais cara. São medidas importantes, mas paliativas. O cerne do problema da conta de luz é outro, e resolvê-lo requer liderança do Executivo, comedimento do Legislativo, sensatez das quase 40 associações setoriais e um pacto para encerrar uma longa relação de abuso com o consumidor.
Nada indica, no entanto, uma reversão dessa dinâmica. A Câmara, por exemplo, acaba de aprovar a extensão do prazo para que donos de painéis solares obtenham subsídios e deixem de pagar taxas para conectar as estruturas à rede, sem qualquer resistência de parlamentares da base do governo atual ou do governo eleito. Enquanto as equipes de Bolsonaro e de Lula tentavam jogar o legado da herança maldita uma para a outra, o consumidor, mais uma vez, foi deixado no escuro.