Na esteira do aniversário de primeiro ano do fatídico dia em que golpistas tentaram levar o caos à Praça dos Três Poderes para deflagrar uma ruptura institucional, o governo anunciou a criação de um “Museu da Democracia”, instituição destinada a oferecer um “olhar abrangente sobre a história da democracia”. Segundo se soube, serão usados R$ 40 milhões para as obras do museu, com previsão de conclusão para 2027, com sede em Brasília. Até lá, uma iniciativa do Ministério da Cultura e do Instituto Brasileiro de Museus acolherá contribuições diversas num espaço digital.
Não fosse a explícita tentativa lulopetista de apropriar-se do 8 de Janeiro e converter a data em louvor ao presidente Lula da Silva e ao PT, o objetivo declarado até soaria louvável: criar um repositório digital para a “construção coletiva” de um museu destinado a contar a trajetória da democracia no Brasil.
Ocorre que estamos falando de um governo petista e de um DNA vocacionado a reescrever a história segundo a própria noção de memória, verdade e justiça. Além da defesa do protagonismo de Lula da Silva na resistência contra os atos – ignorando-se o fato de que a democracia resistiu por um esforço coletivo das instituições nacionais contra delírios golpistas –, a iniciativa exibe cores bem evidentes de partidarismo e viés. No repositório digital lançado pelo governo, que pode ser visto no link https://democracia.museus.gov.br, há diversos projetos de memória “voltados à compreensão das questões contemporâneas da democracia brasileira” que só estão ali porque foram chancelados por curadores governamentais. Uma chancela fartamente tendenciosa.
Um desses exemplos é especialmente eloquente na revelação da providencial mistura entre Estado e governo ou entre a discussão e a difusão da história e certo revisionismo em benefício próprio: o chamado “Museu da Lava Jato”. Iniciativa de um grupo de juristas, jornalistas e historiadores “sobre a operação que passou de uma iniciativa de grande apelo popular para um grande escândalo internacional a partir do conluio entre procuradores e magistrado”, o tal “Museu da Lava Jato” ataca o “viés político” da operação e menciona a “perseguição” à esquerda, sobretudo ao PT. Também reúne acervo jurídico e jornalístico sobre a operação, além de um núcleo de pesquisa de lawfare, isto é, a manipulação de leis e procedimentos legais para perseguir adversários – exatamente a acusação que os petistas faziam sistematicamente contra a Lava Jato.
O repositório digital abriga ainda o Memorial da Democracia, museu virtual do Instituto Lula para “o resgate da memória das lutas de nosso povo pela democracia, pela igualdade e pela justiça social”. Neste caso, previsivelmente, “povo e Lula” e “democracia e PT” são categorias que se fundem deliberadamente. Na linha do tempo com que o projeto apresenta capítulos de “defesa da democracia”, vê-se que greves de sindicatos e ações do MST ocupam mais espaço que avanços institucionais. Que o Plano Real venceu a batalha contra a inflação e estabilizou a moeda, “mas o país paga um preço alto” (seja lá o que isso signifique). Que o governo de Fernando Henrique “intimidou trabalhadores” que se mobilizaram contra privatizações. E que o Brasil “se reencontra na posse de Lula...”.
Foi buscando reescrever a história que o então presidente Jair Bolsonaro patrocinou iniciativas destinadas a recontar o regime instaurado em 1964 e o papel dos militares – incluindo a negação de que o regime militar tenha sido uma ditadura, a celebração do golpe e a tentativa de criminalização das comissões nacionais da verdade instaladas no País. O ex-capitão pregou a desconstrução da história e das instituições para dar legitimidade a seus delírios antidemocráticos. Já Lula da Silva parece se empenhar em ser reconhecido como o maior brasileiro da história, de quem o País é devedor. De um jeito ou de outro, para líderes messiânicos como Lula e Bolsonaro, a história é sempre subsidiária de um projeto autoritário de poder.