Criada pela Constituição para representar a União perante o Supremo Tribunal Federal (STF), a Advocacia-Geral da União (AGU) vem, desde o início do governo Bolsonaro, assumindo iniciativas cada vez mais polêmicas e estranhas às suas atribuições funcionais.
Pela Constituição, ela deve atuar tanto no plano consultivo, assessorando os dirigentes do Poder Executivo federal com o objetivo de dar segurança jurídica aos seus atos e suas decisões, como no contencioso, por meio de representação judicial e extrajudicial. Mas, embora seja um órgão de Estado, algumas de suas iniciativas parecem motivadas mais por critérios partidários do que técnicos, na medida em que atendem aos interesses eleiçoeiros do presidente da República, de seus ministros e dos grupos que o apoiam.
Pelo menos três iniciativas adotadas nos últimos meses comprovam essa tendência. A mais recente foi uma notificação judicial feita pelo órgão contra um membro do Observatório do Clima, que concedeu uma entrevista na qual criticava uma fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, numa reunião ministerial, sugerindo usar a comoção em torno da pandemia para “passar a boiada” na legislação ambiental. Ao atuar como defensora do ministro, que é a parte notificante, a AGU se apresentou como “terceiro interessado”. A justificativa foi de que, em sua fala, Salles teria pedido pareceres jurídicos ao órgão para fundamentar seus argumentos.
Na notificação, a AGU afirma que “o pedido de explicações, admissível em qualquer das modalidades de crimes contra a honra, constitui típica providência de ordem cautelar destinada a aparelhar ação penal tendente à sentença condenatória”. A afirmação é tão desmedida e agressiva que foi interpretada nos meios jurídicos e políticos como uma tentativa explícita de intimidação contra os ambientalistas que criticam a desastrada atuação do governo na área.
A segunda iniciativa da AGU estranha às suas atribuições funcionais foi o recurso que enviou ao STF pedindo que esclareça pontos do julgamento que incluiu a homofobia nos crimes de racismo. O que o órgão almeja é que a Corte declare se essa inclusão atinge ou não a liberdade religiosa. Além de o Estado brasileiro ser laico, como determina a Constituição, essa não é uma questão de interesse precípuo da União. É, isto sim, uma questão de interesse exclusivo das igrejas evangélicas, que se converteram em fonte de apoio político a Bolsonaro.
Do ponto de vista substantivo, o objetivo da AGU é reduzir o alcance da decisão do Supremo. Embora nos meios jurídicos a expectativa seja de que a Corte não acolherá o recurso, o episódio deixa claro que o governo colocou a estrutura jurídica da União a serviço dos interesses políticos do presidente, com vistas à sua campanha pela reeleição em 2022.
A terceira iniciativa polêmica da AGU ocorreu no fim de julho, quando o órgão entrou com ação no Supremo contra a decisão do ministro Alexandre de Moraes que determinou que as redes sociais retirassem do ar contas de influenciadores, empresários e políticos bolsonaristas. Pelo Twitter, Bolsonaro protestou, afirmando que a decisão feria as liberdades de opinião e de informação previstas pela Constituição.
A rigor, o recurso contra o bloqueio dessas contas não cabia ao poder público, mas àqueles que não puderam mais se expressar, ao Twitter e ao Facebook. Alegando que a decisão de Moraes afrontou a Constituição, uma vez que “em uma democracia saudável a liberdade de expressão deve ser plena”, o recurso da AGU foi mais uma demonstração de como Bolsonaro confunde interesse de Estado e interesse pessoal. E, mais grave, como também não hesita em recorrer à estrutura jurídica da União para atender aos seus interesses pessoais.
Vai ficando evidente, assim, que o presidente Bolsonaro não conhece limites. Por isso, quanto mais caminhar nessa linha, como a tentativa de instrumentalização da AGU evidencia, mais necessário se torna que o Supremo dê um basta a tanto acinte, evitando desse modo a corrosão das instituições.