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A inútil reprimenda do STF

Supremo finalmente reconhece a evidente inconstitucionalidade da PEC com a qual Bolsonaro despejou dinheiro público para tentar ganhar a eleição de 2022, mas decide não punir ninguém

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Por Notas & Informações
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O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, ora vejam, que era mesmo inconstitucional a escandalosa emenda constitucional com a qual o governo de Jair Bolsonaro justificou o maná de dinheiro público que choveu sobre os eleitores às vésperas da eleição presidencial de 2022.

Por 8 votos a 2, a Corte enfim reconheceu o teor eleitoreiro da chamada “PEC Kamikaze”. De maneira acintosa, a proposta fabricou um “estado de emergência” inexistente na Constituição, tendo como base as consequências da guerra da Rússia contra a Ucrânia – isto é, a “elevação extraordinária e imprevisível dos preços de petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais decorrentes”. Na verdade, a única “emergência” que havia era a da campanha de Bolsonaro, que patinava num incômodo segundo lugar nas pesquisas eleitorais, o que rendeu ao texto o sugestivo apelido de “PEC do Desespero”.

A proposta permitiu um segundo reajuste ao piso do antigo Auxílio Brasil em menos de um ano, de R$ 400 para R$ 600. Além disso, incorporou mais de 1,6 milhão de famílias aos 18 milhões que já integravam o programa social, dobrou o valor do vale-gás, criou benefícios sociais para ajudar caminhoneiros autônomos e taxistas e zerou a alíquota de tributos federais sobre gasolina, etanol, gás de cozinha e diesel até o fim daquele ano.

O pacote eleitoreiro custou nada menos que R$ 41,25 bilhões em cinco meses, valores que foram desembolsados à revelia do teto de gastos, da regra de ouro (dispositivo que proíbe o governo de se endividar para pagar despesas correntes) e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Mas o País vivia tempos tão estranhos que nada disso foi capaz de impedir a aprovação da proposta por ampla maioria do Congresso, inclusive da oposição, que temia perder votos caso ousasse cumprir a Constituição.

Somente o então senador José Serra (PSDB-SP) se posicionou contra o texto. Na Câmara, mais de 400 deputados deram aval à proposta. Único a orientar voto contrário, o Partido Novo foi o autor da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada há dois anos, quatro dias após a promulgação, e finalmente julgada pelo STF nesta semana.

O relator, ministro André Mendonça, defendia a perda do objeto da ação, uma vez que os efeitos da medida foram exauridos ao fim de 2022. Para ele, o Novo não conseguiu provar que a emenda constitucional violava a regra da anualidade eleitoral, pois a proposta, formalmente, não alterou a legislação eleitoral a menos de um ano da disputa.

Felizmente, o ministro Gilmar Mendes divergiu desse entendimento e defendeu o julgamento da matéria. O tema, afinal, não era a proposta em si mesma, mas o uso abusivo da máquina pública para fins eleitorais, algo que a emenda constitucional exacerbou, mas que vai muito além do período durante o qual ela vigorou.

Como destacou o ministro, o fato de que as bondades se extinguiriam ao fim daquele ano era “explícita ameaça aos eleitores”, sugestionados a votar em Bolsonaro caso quisessem renová-las por mais tempo. Como pontuou o ministro Alexandre de Moraes, “ninguém acredita que esse pacote de bondades não teve impacto eleitoral”.

Ao julgar a ação, o STF reafirmou, ainda que tardiamente, que o País, afinal, ainda tem uma Constituição que precisa ser respeitada. A Corte, no entanto, optou por não punir ninguém por tamanha desfaçatez.

O ministro Flávio Dino sublinhou a “dimensão profilática” da decisão, que, em sua avaliação, cria um precedente para evitar que novas propostas tão indecentes quanto a PEC Kamikaze voltem a surgir. “Que possamos sinalizar que valeu uma vez, e não mais. Senão, nós corremos o risco de aprimoramento desse modelo”, afirmou Mendes.

Tal entendimento denota otimismo ou ingenuidade. Ao não censurar ninguém pela edição da PEC Kamikaze, o STF livrou os integrantes do governo Bolsonaro da responsabilidade por propor uma medida evidentemente eleitoreira, assim como os parlamentares que com ela compactuaram desonrando seus mandatos por populismo, indiferença ou covardia. Não há, portanto, garantia de que o vilipêndio à Constituição não voltará a ocorrer.