Há algum tempo se verificam perigosas semelhanças entre os métodos utilizados na Operação Lava Jato e o que vem fazendo o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito dos inquéritos das milícias digitais e atos antidemocráticos. No mês passado, este jornal alertou para a compreensão excessivamente ampla da competência judicial adotada por Alexandre de Moraes, com base no critério da conexão entre causas (ver o editorial Abusos favorecem a impunidade, de 15/8/2023). Ali advertimos que o sr. Moraes não é juiz universal dos casos envolvendo Bolsonaro. Ora, foi esse equívoco sobre a competência da 13.ª Vara Federal de Curitiba que levou à anulação das condenações de Luiz Inácio Lula da Silva.
No entanto, Alexandre de Moraes não apenas parece indiferente a toda a jurisprudência relativa aos abusos da Lava Jato, como resolveu dobrar a aposta. No sábado passado, homologou a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid e, em seguida, suspendeu a prisão preventiva do militar, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Ainda são desconhecidos os termos da colaboração de Mauro Cid e se ela contribuirá efetivamente para a elucidação de eventuais crimes. De toda forma, é possível apontar dois pontos especialmente graves nessa história.
Primeiro, prisão preventiva não é meio para obtenção de confissão ou delação. Muito utilizado na época da Lava Jato como forma de pressionar pessoas investigadas, esse método foi declarado ilegítimo pelo Judiciário e pelo próprio Legislativo, que, com a experiência da operação, aprovou a Lei 13.964/2019, fixando de forma ainda mais categórica as condições para a decretação da prisão.
No entanto, Alexandre de Moraes explicitou que a prisão de Mauro Cid tinha apenas o propósito intimidador, pois, tão logo foi homologada a delação premiada, o ministro determinou a soltura do militar. Vale lembrar que a prisão havia sido decretada em maio no âmbito da Operação Venire, sobre supostas fraudes em carteiras de vacinação. Ou seja, a medida já suscitava graves suspeitas de desproporção e de utilização para fins não previstos na lei. Agora, tais suspeitas adquiriram patamar de certeza.
Um segundo ponto especialmente sério refere-se a quem participou, por parte do Estado, no acordo de delação premiada. O acordo com Mauro Cid foi celebrado pela Polícia Federal, sem a participação do Ministério Público. É certo que, em 2018, no auge do entusiasmo nacional com a figura da delação, o STF autorizou que a polícia celebrasse sozinha esse tipo de acordo. No entanto, em 2021, o próprio Supremo mudou sua orientação, reconhecendo que não faz sentido haver delação sem o aval do Ministério Público, órgão titular da ação penal pública. Sob esse argumento, o plenário do STF anulou, por maioria de votos, a colaboração premiada celebrada entre a Polícia Federal e o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Na ocasião, Alexandre de Moraes votou pela necessidade do aval do Ministério Público.
É inquietante e muito constrangedora essa instabilidade do Judiciário, cuja orientação jurídica parece depender das circunstâncias políticas e de quem figura entre os investigados. A homologação da delação e a soltura de Mauro Cid ocorreram na mesma semana em que o ministro Dias Toffoli anulou todos os atos da Justiça tomados a partir do acordo de leniência firmado pela Odebrecht – e ainda classificou a prisão de Lula como “um dos maiores erros judiciários da história do País”.
Surgem, então, duas perguntas. Primeira: se o mesmíssimo erro que ora desmoraliza a Lava Jato é cometido por um ministro do Supremo, deixa de ser erro? Segunda: quanto tempo levará para que as provas obtidas por essas investigações no STF, incluídas as da nova delação, sejam consideradas nulas pela Justiça? São perguntas retóricas, claro. Assim como no auge da Lava Jato tudo parecia permitido porque o objetivo declarado era condenar Lula da Silva, hoje tudo parece válido para incriminar Jair Bolsonaro. Não era justiça então, não é justiça agora.