Imagem ex-librisOpinião do Estadão

A lei e a vergonha na cara

O TCU decide que não há lei que impeça um presidente da República de embolsar presentes caríssimos recebidos de governos e empresas. Ora, para isso não é preciso lei. Basta ser decente

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
3 min de leitura

Por maioria, o Tribunal de Contas da União (TCU) mudou radicalmente a posição que tinha até o ano passado a respeito do recebimento de presentes de alto valor por presidentes da República. Em sessão realizada na quarta-feira passada, prevaleceu no plenário do TCU o voto divergente do ministro Jorge Oliveira, segundo o qual, “por falta de fundamentação jurídica”, o presidente Lula da Silva não tem de devolver um relógio de luxo, avaliado em R$ 60 mil, que o petista ganhou da joalheria Cartier numa viagem à França durante o primeiro mandato.

O voto do ministro Jorge Oliveira, acompanhado por quatro de seus pares – Jhonatan de Jesus, Augusto Nardes, Aroldo Cedraz e Vital do Rêgo –, abre caminho para que o ex-presidente Jair Bolsonaro também fique desobrigado de restituir ao patrimônio da União as joias avaliadas em quase R$ 7 milhões que ele recebeu de presente de países do Oriente Médio entre 2019 e 2022.

Na superfície, esse novo entendimento do TCU pode parecer uma decisão salomônica. Na realidade, é só uma lambança – a começar pelo fato de igualar situações fáticas e jurídico-normativas muito distintas entre si.

Especula-se sobre os interesses pessoais ou políticos que, eventualmente, possam ter sido atendidos pelo voto do ministro bolsonarista Jorge Oliveira. A defesa de Bolsonaro, aliás, já afirmou a este jornal que a decisão do TCU foi “acertada” e servirá de base para um pedido de anulação do inquérito que corre contra o ex-presidente no Supremo Tribunal Federal pelos crimes de associação criminosa, peculato e lavagem de dinheiro no caso das tais joias das arábias.

Fato é que, à luz dos argumentos vitoriosos, o TCU consagrou a indecência na mais alta esfera da administração pública federal. Em seu voto, Jorge Oliveira recorreu a uma platitude ao dizer que “não há crime sem lei anterior que o defina”, princípio basilar do Direito Penal, para sustentar que, “até o presente momento, não existe no País uma norma clara que trata sobre o recebimento de presentes por presidentes da República”. Ora, não apenas há lei que dispõe sobre essa questão – Lei n.º 8.394/1991, regulamentada pelo Decreto n.º 4.344/2002 –, como até pouco tempo atrás havia a normatização do próprio TCU, fixada em 2016.

Ademais, como muito bem sublinhou o ministro Walton Alencar, ao final derrotado, o impedimento para que um presidente da República receba bens de luxo no exercício do cargo é “uma questão tão óbvia que o legislador entendeu desnecessária a menção na lei”. A seu jeito, Alencar rememorou o célebre e lacônico projeto de Constituição proposto pelo historiador cearense Capistrano de Abreu (1853-1927): “Art. 1.º – Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Art. 2.º – Revogam-se as disposições em contrário”.

É disso que se trata: de vergonha na cara, de moralidade na administração pública e de espírito republicano. Na prática, o TCU decidiu que, se não há lei expressa que o proíba, é dado a um presidente da República embolsar, como se fossem seus, presentes caríssimos dados por governantes e empresas. Parece óbvio que não há necessidade de leis quando basta ter a decência de tratar esse tipo de mimo de forma impessoal, destinando-o ao patrimônio do Estado. Do contrário, pode ficar parecendo que o presidente talvez tenha interesses inconfessáveis ao ficar com esses presentes para si mesmo. A não ser que se trate de um presidente indiferente à moralidade, esse tipo de conduta deveria ser evitado por princípio.

Nem Lula nem Bolsonaro foram presenteados por Estados estrangeiros por seu magnetismo pessoal, carisma ou simpatia. Por óbvio, ambos foram agraciados a seu tempo única e exclusivamente pela condição de chefes de Estado e de governo. Logo, todo e qualquer presente que receberam pertence à União, salvo, é claro, aqueles bens de pequena monta tidos pela norma como “personalíssimos”.

Numa monarquia, o Estado se confunde com a pessoa do monarca. Numa República, a ordem constitucional impõe a moralidade e a impessoalidade ao administrador público. O presidente da República é um servidor temporário da sociedade brasileira. Esta condição torna toda a discussão havida no TCU ociosa, para não dizer ridícula, se acaso ao menos a Constituição de Capistrano fosse cumprida neste país.