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A nova desordem mundial

Novos conflitos sinalizam que a ordem do pós-guerra morreu, mas a nova ainda não nasceu: ante a escalada da competição entre potências, o mundo precisa de um novo modelo de cooperação

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Por Notas & Informações
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O pesadelo em Israel deveria ser um momento de clareza moral. Ele reacendeu debates sobre as ambivalências no Oriente Médio, especialmente sobre as ações e omissões de israelenses e palestinos. Mas as centenas de civis, sobretudo mulheres e crianças, executados, mutilados ou estuprados são um alerta de que, além dos matizes geopolíticos e “choques de civilizações”, há uma luta do bem contra o mal, da civilização contra a barbárie. Ainda assim, dias após a carnificina, o Conselho de Segurança da ONU – que deveria ser a polícia do mundo – foi incapaz de emitir uma manifestação – muito menos uma resolução – que deveria ter saído em minutos.

Em 1945, após a catástrofe das guerras mundiais, a clareza moral resplandeceu na forja das Nações Unidas “em uma unidade indestrutível de determinação – para encontrar um fim a todas as guerras”. Por quase 80 anos a ordem baseada em regras, supervisionada pela ONU, ajudou a evitar uma terceira guerra.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, dividiu essa história em três períodos. Primeiro, o mundo “bipolar” da rivalidade entre EUA e URSS. Depois, um breve período “unipolar”, com a hegemonia americana. O Conselho de Segurança lançou missões de paz para proteger populações contra atrocidades em massa e a globalização promoveu um período inaudito de prosperidade. Mas no século 21 sucederam-se os sinais do fim da ordem pós-guerra: o 11 de Setembro, a crise financeira, a anexação da Crimeia pela Rússia. Os malogros dos EUA no Iraque e no Afeganistão precipitaram uma retração isolacionista, enquanto uma Rússia revanchista e uma China expansionista desafiavam sua supremacia. O retorno da guerra à Europa lançou a pá de cal. Vivemos a terceira fase na periodização de Guterres: “O mundo ainda não é multipolar, é essencialmente caótico”.

A ideia de uma “nova guerra fria” não dá conta da interdependência econômica entre a China e o Ocidente. E mesmo no que há de similar, a rivalidade entre uma superpotência democrática e uma autocrática, os papéis se inverteram: a primeira se mostra errática na defesa da ordem liberal da qual foi artífice e a segunda busca dobrar essa ordem às suas conveniências despóticas.

Mas reduzir a nova ordem a uma “batalha entre a autocracia e a democracia” é simplista. Ela depende de um equilíbrio entre os vértices de um triângulo: o Ocidente global, o Oriente global e o Sul global. O Ocidente – EUA, Europa e seus aliados – quer preservar a ordem liberal que o Oriente – China, Rússia, Irã e seus aliados – quer desmantelar, revivendo o modelo que põe o Estado e a soberania nacional em primeiro lugar, à custa das liberdades individuais, direitos humanos e valores ditos universais, que denuncia como sendo armas retóricas do Ocidente para perpetuar seu imperialismo e a supremacia branca. O Sul global tenta se manter neutro, enquanto busca influência e representação para criar condições ao seu desenvolvimento.

Entre essas incertezas, “temos um multilateralismo sem dentes”, disse Guterres, “e quando tem dentes, como no Conselho de Segurança, não tem apetite para morder”.

Por ora, o que se vê é a coalescência de ordens “plurilaterais” ou “minilaterais” que buscam acomodar interesses, valores e poder. Mas esta década, na qual a Rússia busca asseverar sua força na Europa; o Irã, no Oriente Médio; e a China, na Ásia, provavelmente definirá a fisionomia do século 21. “Como em 1919, com a malograda criação da Liga das Nações, 1945 e o estabelecimento da ONU e 1989, quando muitos de nós acreditamos que o resto do mundo iria finalmente aceitar os três pilares de uma sociedade bem-sucedida (democracia liberal, economia de mercado e abertura à globalização), podemos errar, acertar ou ficar em algum lugar no meio”, avaliou o ex-premiê da Finlândia Alexander Stubb. “Devemos evitar os erros de 1919, aprender com o equilíbrio de poder estabelecido em 1945 e tornar a ordem liberal de 1989 universalmente atraente.” O sucesso ou fracasso nesse desafio determinará se o “caos” de que fala Guterres é a dor do parto de um novo corpo para a governança global ou o seu aborto.