Prefeitos de mais de 4.000 cidades preparam uma marcha a Brasília em outubro para pressionar o governo Lula da Silva por maiores repasses federais. A choradeira nada tem de novidade, mas tem relevância. Expõe paradoxos ainda não superados ao longo dos 35 anos de vigência da Constituição Cidadã. A correta transferência de atribuições sociais aos municípios pela Carta de 1988 jamais encontrou respaldo em uma equação federalista que garantisse às prefeituras as receitas necessárias para a execução dessas e outras políticas essenciais aos cidadãos. Quem sofre com essa omissão é o munícipe.
Reportagem do Estadão, integrante da série Desigualdade – O Brasil tem jeito, expôs a dificuldade enfrentada pela maioria dos municípios para quitar sua própria folha de pagamento – não raro, sobrecarregada e vitaminada em períodos eleitorais. De janeiro a junho deste ano, o gasto com os 7 milhões de servidores públicos das 5.568 cidades do País totalizou R$ 208,5 bilhões. Os repasses federais, resultantes da partilha do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), cobriram 74,8% dessa conta.
Não há dúvida de que uma elevação casual dos repasses da União aos municípios apenas enxugaria gelo. Cobriria o déficit na folha de pagamento, que somente no primeiro trimestre deste ano cresceu mais de 16%, sem grandes chances de suprir a carência de investimentos urbanos nem de melhoria no atendimento básico de saúde e educação. Obviamente, em razão de interesses eleitorais, não se vislumbram cortes de servidores municipais.
A questão de fundo certamente está na equação dos repasses federais e do acesso à parcela devida do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) estadual, sobretudo pelo fato de que as obrigações constitucionais de prover os serviços de saúde e educação recaíram sobre os municípios desde 1988. Dados do Observatório de Informações Municipais (OIM) mostram que, de 1972 a 2022, os dispêndios orçamentários das prefeituras com saúde saltaram de 5,67% para 25,49%. No caso da educação, passaram de 14,82% para 26,76%. Os inevitáveis cortes recaíram, sobretudo, nos serviços urbanos, com queda de 27,41% para 9,89%.
A compressão do Orçamento pelos gastos com saúde e educação, entretanto, não é o único vetor da pindaíba das prefeituras desfalcadas de recursos até mesmo para essas áreas, além dos cruciais investimentos em saneamento básico e na infraestrutura urbana e rural. Igualmente grave é a incapacidade de os municípios construírem, ao longo desses 35 anos, estruturas arrecadadoras eficientes dos tributos que lhes competem. Nos mais pobres, é preciso considerar que a cobrança de IPTU é inviável; a do ISS, nula; e a do ITBI, surreal. Fato é que a maioria dos municípios que abrigavam mais de 50 mil habitantes de 2015 a 2019 não conseguiu coletar mais do que 10% do seu orçamento, segundo o OIM.
A situação de Araguainha (MT), pinçada com destaque pela reportagem, ilustra esse quadro. A prefeitura da cidade, onde vivem 1.010 brasileiros, emprega todos os trabalhadores formais da localidade, cujos salários consomem 64% dos repasses federais. Em contrapartida, cerca de 94,5% da população não tem acesso a esgoto tratado, a única escola está em ruínas, não há creche e falta asfalto nas ruas. É admirável haver candidatos à sua prefeitura.
Em parte, a reforma tributária poderá contribuir para elevar a receita da maioria dos municípios, ao garantir a arrecadação do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) no destino do consumo, conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mas há que considerar seriamente a revisão das leis que regulamentaram a acertada decisão do constituinte de 1988 de garantir maior protagonismo aos municípios no federalismo brasileiro. A Carta, tal qual promulgada, é irretocável nesse quesito. Mas, a bem do cidadão, falta ser aplicada.